Autor: Luiz Garibaldi Introcaso
Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Projeção/DF. Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. Analista Legislativo, atribuição Técnica-Legislativa, da Câmara dos Deputados, onde ocupa a função Assessor Técnico-Jurídico da Liderança do PSL na Câmara. Advogado e Professor.
Como citar esse texto:
INTROCASO, Luiz Garibaldi. A evanescência da Ciência do Direito. Revista JusLogos, ano I, Setembro de 2021, nº 01, págs. 88 a 111.
Resumo: O Direito é ciência e, como tal, é orientado por postulados normativos, princípios, conceitos e regras que compõem um sistema lógico e coerente, cuja permanência depende da perpétua iteração entre a mundo das concepções e a prática judicante, no momento da concreta realização do Direito na vida das pessoas. Neste artigo, veremos como uma concepção progressista da jurisprudência constitucional no Brasil tem-nos levado a cenário de dúvidas sobre a consistência científica do Direito em nosso país.
Palavras-Chave: Ciência do Direito. Conservadorismo. Progressismo. Jurisdição Constitucional. Separação de Poderes.
Sumário:
1. Conservadorismo.
2. Conservadorismo e Ciência do Direito.
3. O Supremo como instância universal e originária da Justiça criminal brasileira.
4. Do princípio da legalidade cerrada ao princípio da supremacidade aberta em matéria de direito penal incriminador.
5. O novo princípio acusatório do processo penal brasileiro.
6. Da assunção de funções típicas do Poder Legislativo.
6.1 Supressão do poder de emenda no processo legislativo.
6.2 Indicação de outros precedentes peculiares.
7. Conclusão.
1. Conservadorismo.
Foi com bastante alegria que recebi o convite para escrever o presente texto, especialmente em razão do propósito deste periódico jurídico, que se volta à discussão do Direito com pretensão de maior rigor científico do que se tem observado, por exemplo, na construção da jurisprudência dos Tribunais pátrios.
Com esse apelo à retomada da consciência jurídica ancorada em preceitos científicos seculares, penso que seja mesmo uma consequência inerente a essa premissa abordar o conteúdo do Direito de forma conservadora, respeitando o legado que recebemos de civilizações antigas e modernas, opondo-se, portanto, a ideias que, a pretexto de se autodenominarem progressistas, acabam por comprometer elementos básicos da cultura ocidental, em geral, e da ciência jurídica, em particular, na medida em que enxergam no passado não os alicerces das reflexões maduras do presente, mas obstáculos que devem ser superados em sua completude, operando-se abruptas e absolutas transformações na esfera dos valores.
Como não poderia deixar de ser, a consecução do cego objetivo progressista obrigatoriamente exige a desconstrução de tradições e de princípios que orientaram muitos e muitos anos de evolução das civilizações ocidentais, a exemplo dos valores morais e religiosos, que têm na família formada por pai, mãe e filhos a célula mater da sociedade, responsável por gerar e transmitir valores ao longo de infindáveis gerações.
Passa-se a vender uma realidade de mutação social tão intensa quanto altamente questionável em seus fundamentos, a exemplo da liberação total da sexualidade das pessoas, desde a imaturidade, como se expressão máxima da liberdade individual fosse, cujas consequências não podem ser defendidas como mais benéficas do que os rigores familiares do passado.
Não se pode, a pretexto da laicidade do estado, negar a importância jurídica da religiosidade e dos valores morais que esse sentimento infunde nas pessoas e, a partir disso, defender a ideia de que não há moralidade a ser tutelada na vida social, convertendo o valor da liberdade em algo que pode se satisfazer com a simples liberação dos instintos. Há ainda no mundo muitas pessoas que se apoiam na certeza de que o ser humano possui natureza complexa e que o domínio das forças primitivas da vida pelo poder da mente e do espírito constitui a principal meta da existência. Essa posição deve ser respeitada, assim como respeitado deve ser o direito de defendê-la.
Obviamente, a evolução dos valores e dos costumes é um dado da natureza intrínseca das sociedades humanas ao longo do tempo, como se estivéssemos sendo o tempo todo impulsionados a seguir a diante e ir além. Entretanto, o futuro da humanidade continua a ser uma janela que leva, nela fitando-se os olhos, a um completo breu exterior, em que a incerteza é a única certeza que podemos ter.
Hoje temos liberdade e vivemos em sociedades que proporcionam a um número expressivo da população mundial acesso a condições de vida, saúde, alimentação, trabalho e lazer muito sofisticadas, impensáveis há quarenta ou cinquenta anos atrás, graças a saltos econômicos decorrentes do avanço científico, industrial e tecnológico do período. Mas, todo esse progresso não teve o lançamento da sua pedra fundamental há quarenta ou cinquenta anos atrás, mas há milênios, desde civilizações muito antigas, como a egípcia, os sumérios e os etruscos, anteriores ao apogeu de Grécia e Roma. Todo esse conhecimento, depositado ao longo dos séculos que se seguiram, permitiram o ressurgimento das ciências e da filosofia renascentista no continente europeu, marco inicial de uma nova fase, que nos permitiu chegar ao Século XX em condições de patrocinar esse mundo de possibilidades quase infinitas que estamos experimentando neste início de Século XXI.
Assim, não se faz progresso, em nenhuma seara da vida humana, sem um background de historicidade forte por trás, que fornece os elementos da experiência e do passado para que o homem possa avaliar com maior responsabilidade e segurança as consequências futuras das decisões do presente.
O olvido deliberado e contumaz dos alicerces do passado é fonte de perigos imensos. Nunca imaginei, por exemplo, que um dia fosse testemunhar, conforme os episódios de 2020, a existência de movimentos coletivos, reverberados por parte expressiva da imprensa nacional, que colocam em questão o papel histórico desempenhado pelos pais fundadores da República dos Estados Unidos da América e pelos documentos fundamentais que produziram, procurando retirar referências a suas pessoas dos livros de história e em monumentos que embelezam cidades por todo o país. Pensei que o valor da Declaração de Independência de 1776 se tratasse de algo sagrado à democracia americana. Dizer que George Washington possuía escravos e que, por isso, os americanos não devem mais respeitá-lo como antes é de uma insensatez de percepção temporal que se não for fruto de devaneio alucinante, certamente é resultado de uma ação deliberada de guerra cultural.
Procurar interpretar in totum a vida de homens como a do primeiro Presidente dos Estados Unidos da América com base no que atualmente assumimos como verdade não apenas é anacrônico, mas malicioso, porquanto lança trevas sobre personalidades, obras e acontecimentos que são justamente a origem das democracias e das liberdades fundamentais contemporâneas às quais tanto atribuímos valor. Essa atitude deixa um vazio na memória nacional, que nada pode preencher ou substituir, e é aí que mora o perigo: o retorno a um mundo sem regras, onde prevalece o poder do mais forte ou do mais persuasivo.
2. Conservadorismo e Ciência do Direito[1].
Feita essa reflexão inicial, de caráter geral, penso que seja possível identificar, com algumas evidências, as repercussões que essa realidade de manipulações conceituais e de rupturas culturais produz na Ciência do Direito no Brasil, algo que se realiza pela via da construção de uma jurisprudência constitucional progressista, que muitas vezes ignora de forma veemente o papel constitucional do Congresso Nacional e da Presidência da República como órgãos de soberania nacional representativos da democracia eletiva e titulares de competências originárias indeclináveis e intransferíveis.
O esquema constitucional de divisão de competências, de fato, não tem se mostrado relevante no que diz respeito à interpretação e à aplicação do Direito pelos tribunais, entre os quais recebe natural e incomparável destaque o Supremo Tribunal Federal, que, hoje, paira sobre os poderes constituídos à semelhança do poder moderador da extinta monarquia oitocentista. Dele nada escapa ao controle, independentemente do nível ou da posição do agente produtor da norma ou da decisão sindicada, havendo caminhos processuais abertos que permitem o acesso de toda e qualquer matéria de maneira originária e universal à sua alçada.
Antes, porém, de olharmos com mais cuidado e atenção casos específicos que permitem inferir uma certa superação científica do Direito por um voluntarismo judicial constitucional, julgo relevante compartilhar um pouco dos eventos que me permitiram permanecer na posição de observador regular dessa mutação institucional brasileira.
De setembro de 2007 a outubro de 2009 cursei e concluí o curso de Mestrado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde tive a oportunidade de respirar um ambiente de pensamento jurídico do mais alto nível, mantendo contato e assistindo a aulas e palestras, por exemplo, do Doutor Vieira de Andrade[2], Doutor Gomes Canotilho[3], Doutor Jorge Miranda[4] e Doutor José Manoel Moreira Cardoso da Costa[5], de quem fui orientando na dissertação, além de muitos outros professores da nova geração, todos igualmente estudiosos e competentes.
Doutor Cardoso da Costa foi membro da Comissão Constitucional, órgão de natureza jurídica que emitia pareceres prévios nos processos de controle de constitucionalidade exercido pelo extinto órgão político denominado Conselho da Revolução, entre os anos de 1976 a 1982, ano em que o Conselho foi extinto, dando lugar à criação do Tribunal Constitucional Português, para o qual foi escolhido pela Assembleia da República para ser um de seus treze juízes. No Tribunal, foi Presidente por mais de década, aposentando-se exatamente no ano em que dele fui aluno, em 2007.
Perto do fim do ano letivo 2007/2008, na fase de elaboração do projeto de dissertação, em uma conversa que tive com o Doutor Cardoso da Costa, disse-me que, fosse ele aluno, dedicar-se-ia a investigar o tema do controle judicial das omissões legislativas, por envolver o exame de zonas limítrofes ao funcionamento da jurisdição constitucional e que, por isso mesmo, suscitava a revisão de vasto material doutrinário europeu de extrema profundidade e densidade que se dedicava à temática, além dos precedentes que demarcaram a marcha evolutiva da jurisdição constitucional do pós-2ª Guerra em Portugal, Espanha, Alemanha e Itália.
No Brasil, material de excelente qualidade estava sendo produzido nessa matéria, a exemplo dos livros Proteção Judicial contra Omissões Legislativas, da Professora Flávia Piovesan; Sindicar a Omissão Legislativa, Real Desafio à Harmonia entre os Poderes, da Professora Vanice Regina Lírio do Valle; e Controle Judicial das Omissões do Poder Público, do Professor Dirley da Cunha Júnior, além de muitos outros livros e outras inúmeras publicações em obras coletivas e revistas jurídicas.
Entrementes, em 2007, o Supremo Tribunal Federal proferiu algumas decisões que ressuscitaram a funcionalidade do remédio constitucional do mandado de injunção, retirando-o da zona de letra morta da Constituição, fornecendo-lhe um novo sentido e utilidade prática. Essas decisões foram proferidas no julgamento dos Mandados Injunção n. 670, 708 e 712, movidos por entidades representativas de classe de servidores públicos que exigiam lhes fosse assegurado, de plano, o gozo do direito de greve, que, àquele tempo, mesmo após quase vinte anos de vigência da Constituição, ainda não havia sido disciplinado ao nível da lei ordinária.
Em decisão paradigmática, o Supremo Tribunal Federal determinou a aplicação da legislação que disciplina o direito de greve dos trabalhadores da iniciativa privada às categorias do serviço público, com algumas exceções, como os agentes das forças de segurança, que não titularizam o referido direito.
Como se nota, a decisão, no mérito, não trouxe em si algo de revolucionário, porquanto se valeu de um instituto bastante antigo de integração de lacunas do ordenamento jurídico: a analogia. Com as devidas ponderações, simplesmente se concluiu que havia razões fáticas e jurídicas suficientes para se entender que, quando o legislador infraconstitucional finalmente colocasse em marcha o processo legislativo destinado a disciplinar o direito de greve dos servidores públicos, o resultado normativo não poderia ser muito diferente daquele que já era aplicável ao exercício do mesmo direito por categorias da iniciativa privada.
Assim, justo e razoável que essa disciplina legal fosse tomada de empréstimo para servir de base ao gozo do direito de greve na esfera pública, após feita a ponderação de que o resultado normativo da omissão legislativa estava a ser mais grave, por negar vigência à Constituição, do que eventuais questionamentos de que o Tribunal estaria a agir como legislador positivo.
Essa solução não era nova na jurisprudência do Tribunal e podemos identificar, no mesmo período, a adoção da mesma premissa decisória no julgamento do Mandado de Injunção n. 721, que discutia o gozo do direito à aposentadoria especial de servidores públicos, cuja lei complementar ainda não tinha sido editada. Seguindo a mesma lógica, mandou-se aplicar a legislação regente desse direito na esfera privada, legitimando o servidor impetrante a se valer do direito de petição junto ao órgão ou entidade a que vinculado, para pedir o cômputo especial do tempo de aposentadoria com base nos critérios da legislação que se tomava por empréstimo. Constituía-se, portanto, decisão fruto de um raciocínio baseado na analogia.
Em termos metodológicos, o emprego da analogia não foi o que definiu o ponto de virada da jurisprudência do Tribunal e, posteriormente, de sua própria vocação e natureza institucional. O que produziu esse resultado foi a superação dogmática da dicotomia legislador positivo/negativo, assumindo-se que a Corte poderia, em alguns casos e a fim de dar efetividade a promessas jusfundamentais da Constituição, substituir-se ao Parlamento na tarefa de inovar no ordenamento jurídico e dar regramento geral e abstrato de natureza material e/ou procedimental a certas matérias, com vistas ao exercício de direitos. Assim se passou, pois, o Tribunal conferiu, pela primeira vez, no caso do direito de greve dos servidores públicos, eficácia erga omnis à decisão proferida em sede de mandado de injunção, writ cujo propósito originário é justamente superar quadros de omissões normativas inconstitucionais.
Assim, diante de todos esses elementos que a experiência constitucional brasileira oferecia e aconselhado pelo Doutor Cardoso da Costa, erigi como problema de pesquisa investigar se havia algo de peculiar no funcionamento concreto do princípio da separação de poderes no nosso país, que estaria de alguma forma a legitimar essa postura institucional do Supremo Tribunal Federal.
Após proceder a razoável revisão teórico-doutrinária do conceito de omissões legislativas constitucionalmente relevantes, segundo classificações formais e materiais, visitamos um pouco da experiência da jurisdição constitucional em Portugal, Espanha, Alemanha e Itália, para então, por fim, olharmos com um pouco mais de atenção às características histórico-institucionais do Supremo Tribunal Federal tanto anteriores como posteriores a 1988, a seus poderes e competências, para que esse panorama pudesse ser confrontado com outros elementos da vida cotidiana da praça dos três poderes e assim verificar, nos votos e nos debates que geraram o acórdão paradigma do direito de greve dos servidores públicos, em que medida a persistência em não atender a ordens constitucionais de legislar por parte do Congresso Nacional – que se via como refém, de uma forma bem mais acentuada do que nos dias de hoje, de um presidencialismo de coalizão que sequestrava o poder de agenda legislativa do Parlamento pelo poder de edição de medidas provisórias do Presidente da República – estaria a formar um ambiente de rogativas à intervenção normativa da jurisdição constitucional em matéria de direitos fundamentais.
Era difícil encontrar na doutrina, que tem entre suas principais tarefas o dever de crítica construtiva à jurisprudência, vozes que de algum modo exprimissem reservas quanto ao avanço da jurisdição constitucional sobre funções legislativas típicas do Parlamento. O que em geral se via e ouvia eram aplausos e um certo clima de euforia, como se finalmente estivéssemos descobrindo o caminho que permitiria a materialização das promessas constitucionais de igualdade e de justiça social.
Lastreados na ideia de que a jurisdição constitucional legitimava-se democraticamente pela sinceridade e pelo esforço racional e argumentativo que deveria sempre imprimir em suas decisões, passou-se a ver no Supremo Tribunal Federal o colégio de sábios que iria se contrapor à inércia e ao descompromisso constitucional do legislador infraconstitucional, sempre muito atabalhoado em meio à sua lógica político-partidária interna, para que conseguisse se debruçar com fidelidade sobre as verdadeiras necessidades da população, a qual ansiosamente aguardava a tão desejada ação política transformadora da vida social.
Porém, existem algumas verdades que, depois de descobertas, não podem jamais ser novamente ignoradas, não havendo progressismos que sejam capazes de superá-las. Uma dessas verdades está na raiz do princípio da separação de poderes, universalizado por Montesquieu em Do Espírito das Leis[6], segundo a qual a concentração de poder político em uma única pessoa ou corpo de principais leva invariavelmente e sem exceções ao abuso e à arbitrariedade.
Uma vez que na realidade institucional brasileira nada havia que permitisse supor que àquele caminho de superpoderes jurisdicionais que se desenhava não se aplicaria a máxima de Montesquieu, era de se inferir que a normalização de um cenário patológico de inércia legislativa e de consequente ação normativa corretiva da justiça constitucional acarretaria a consequência inevitável do excesso de poder. Assim, ancorado na certeza de que o princípio da separação dos poderes encontra fundamentos históricos atemporais[7], conclui minha dissertação de mestrado[8] com a seguinte reflexão, que transcrevo em parte:
“(...) jamais haverá poderes constitucionais moribundos, latentes, indefinidamente. A iteração perpétua do poder fará derramá-lo de um lado para outro, pois nem mesmo o silêncio contumaz de um dos agentes é capaz de prejudicar ou mesmo anular a perene dinâmica da fonte vital da Constituição.
A origem do desequilíbrio, motivo para o reequilíbrio (que pode até mesmo contar como meio a concentração temporária e precária de competências em um único poder ), é um dado que se colhe do plano da eficácia e da prática constitucional, por isso indispensável o exame das realidades dos poderes envolvidos no evento, pois do contrário apenas surgirão ideias paliativas, jamais curadoras da patologia.
O exercício soberano e abusivo pelo chefe do Executivo de suas competências constitucionais, sem a devida contenção pelo Legislativo, responsável político por rejeitar medidas provisórias que não apresentem matérias realmente urgentes – indispensáveis para um interesse público na iminência de sofrer lesão irreparável –, levou ao atrofiamento das Casas parlamentares, cuja agenda se viu controlada e determinada pelo Executivo, e assim fermentou a supremacia deste, já incrementada em sistema presidencial de um país que viveu mais da metade da sua vida republicana sob Executivos quase plenipotenciários .
Na outra via, à vazante da correnteza, observamos o exercício incomum de competências legislativas no domínio do Judiciário. Na medida em que âmbitos da realidade se viam sufocados por falta de interposição legislativa constitucionalmente determinadas, viu-se o Judiciário (no caso, o STF) na obrigatoriedade de decidir sobre o preenchimento dos espaços vagos deixados pelo Legislativo, absolutamente injustificáveis, através de um rearranjo normativo do ordenamento jurídico com base em elementos já nele presentes, tanto no texto da Lei Maior como em outras decisões legislativas formadas em lei vigente.
A redistribuição do poder, quando um ou mais falha(m), é inevitável.
O povo, titular do poder soberano, por mais ausente que se encontre da vida política do país, jamais deixa de estar vivo, eternamente pulsante de energia vital, e, por isso, podemos dizer que a Constituição, documento pelo qual expressa sua vontade nacional, é também regida pelo princípio do fluxo permanente de poder, que demanda, como uma de suas consequências, compromisso, vontade, consciência de Constituição.
(...) a existência de mecanismos constitucionais mais ou menos elásticos, dispostos às competências dos órgãos representativos do poder, como é o caso do mandado de injunção, manipulável segundo as variantes identificadas ao longo do texto, torna também dinâmico, elástico e historicamente ou temporalmente adaptável o princípio normativo da separação do poder entre os poderes.
Todavia, cremos seriamente se tratar de área do Direito Constitucional brasileiro carente de extrema prudência e cautela. O neoconstitucionalismo, acolhido pela doutrina hodierna fascinada (e com razão) pela ideia de justiça material assecuratória da dignidade humana, custe o que custar, por vezes parece focar o Poder Legislativo como um grande assaltante da história que sempre está a roubar o brilho da Constituição democrática, defendida por um guardião intelectualizado, moralmente ilibado e especialmente legitimado.
Acreditamos que as concepções não podem seguir exatamente este caminho. Não podemos deixar de ter em mente que a distribuição orgânica e funcional dos poderes remonta origem histórica irretorquível: a contenção do poder pelo poder, cujo escopo basilar é a guarda dos direitos fundamentais e o exercício concreto das liberdades pelos cidadãos. O risco para estes direitos e liberdades, exteriorizações da dignidade de todas e cada uma das pessoas, causado pelo potencial abuso de poder quando reunido em um único corpo de principais, não se diluiu com o passar dos séculos, ao contrário, é realidade atual, é risco que não deixou de existir, porém sob outra roupagem.
Não negamos a imprescindível defesa da Constituição por um guarda especializado, por uma Corte composta por intelectuais de elevadíssimo poder racional e por isso argumentativo. No entanto, são homens, constituem um único corpo de principais e, assim, sobre eles também recai o histórico risco.
Por esta razão, as importantes intervenções normativas operadas pelo Supremo Tribunal brasileiro devem ser consideradas excepcionais, remédios emergenciais em resposta a uma patologia grave: a letargia política e institucional do Congresso Nacional.
São intervenções que não podem ser tidas como regra. É preciso atenção quanto às consequências futuras de um tal enquadramento institucional. (...)”
Essas foram reflexões acadêmicas que fiz como resultado dos estudos que empreendi entre os anos de 2007 e 2009. Não sabia ainda que, em 2012, seria aprovado no concurso público para o cargo de Analista Legislativo, atribuição Técnica Legislativa, da Câmara dos Deputados, e que, a partir de janeiro de 2013, passaria a desempenhar a função de assessor técnico-jurídico da Secretaria-Geral da Mesa dessa Casa de Leis.
Fui recebido no órgão pelo então Secretário-Geral, Sérgio Sampaio, dizendo-me que a Assessoria Jurídica da Secretaria-Geral era o cérebro da Câmara, não havendo lugar melhor para alguém formado em Direito trabalhar dentro da Casa. Pelos sete anos que lá passei, pude confirmar essa afirmação.
Com efeito, trata-se do órgão da Câmara dos Deputados por onde os famosos diálogos institucionais entre Legislativo e Judiciário acontecem, além, obviamente, de outro número expressivo de atribuições. O trabalho de confecção das peças processuais que servem de instrumento de manifestação da vontade institucional da Casa em ações de controle de constitucionalidade e ações originárias em tramitação no Supremo Tribunal Federal é lá realizado. Assim, tive a oportunidade de continuar a acompanhar a evolução da jurisprudência da Corte, mas agora na perspectiva interna da Câmara dos Deputados, aproveitando-me bastante o conhecimento adquirido nos estudos acadêmicos de anos anteriores.
Pude observar, na prática da minha experiência profissional, que aquele temor quanto ao abuso de poder, quando absoluto e sem controle, é de mesmo perene e incontornável.
Aquela preocupação acadêmico-científica que se via na doutrina e na jurisprudência de tentar compreender e dar enquadramento conceitual ao controle judicial das omissões legislativas dentro do panorama de um Estado Democrático de Direito, que tem a separação de poderes como princípio fundamental, foi sendo paulatinamente abandonada no decurso dos anos da prática judicante, materializando-se, no plano da jurisdição constitucional brasileira, o velho adágio popular: onde passa boi, passa boiada. Hoje, em 2021, não mais se discute limites à jurisdição constitucional no Brasil, ao menos discussões que possam ser transformadas em limites concretos à atuação do Tribunal. Até mesmo a liberdade de crítica está sob a vigília.
Nos tópicos a seguir, analisaremos alguns dos precedentes que serviram como as alavancas da transformação do Tribunal, procurando estabelecer, em cada um desses casos, o conceito ou princípio científico do Direito que deixou de ser observado.
3. O Supremo como instância universal e originária da Justiça criminal brasileira.
Instrumentos processuais diversos foram configurados pela legislação ao longo das décadas de 1990 e 2000, que colocaram à disposição do Supremo Tribunal Federal a competência para funcionar como instância originária e universal da Justiça brasileira. Nosso objetivo aqui não é explorar os aspectos técnico-processuais desses meios, nem mesmo o acerto ou desacerto do mérito das decisões, mas simplesmente citar casos em que o indevido salto de instâncias e a concentração imprópria de competências foram verificados.
Em junho de 2016, o ex-Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, foi alvo de mandado de prisão preventiva expedido pelo juízo federal da 6ª Vara Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores da Seção Judiciária de São Paulo, como um dos desdobramento da Operação Lava-Jato, na chamada Operação Custo Brasil, que tinha por objetivo investigar alegado esquema de gestão fraudulenta dos descontos do crédito consignado em folha de pagamento do funcionalismo do Executivo Federal.
Contra a ordem de prisão, a defesa do investigado ajuizou a Reclamação n. 24.506 no Supremo Tribunal Federal, alegando que o juízo de piso estaria a usurpar competência do Tribunal, na medida em que os fatos investigados seriam conexos com outros apurados no Inquérito n. 4.130, então em curso na Corte, que tinha entre os investigados a Senadora Gleisi Hoffmann, esposa do ex-Ministro, hoje Deputada Federal.
O pedido de liminar constante da Reclamação foi negado pelo Relator, Ministro Dias Toffoli, ao entender que não estaria presente no caso a plausibilidade jurídica da alegação de usurpação de competência do Supremo Tribunal, já que o desmembramento da investigação – e a consequente remessa de parte dos fatos apurados no inquérito ao juízo de primeira instância competente para processar e julgar os investigados que não tinham prerrogativa de foro – fora medida determinada pelo próprio Supremo Tribunal Federal em julgado anterior.
Entretanto, mesmo sendo o caso de manifesta improcedência do pedido, como ao final confirmado pela Segunda Turma, o Relator entendeu presentes os requisitos para a concessão da ordem de habeas corpus de ofício pelo Tribunal, com amparo no § 2º do art. 654 do Código de Processo penal, segundo o qual “os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal”.
Trata-se de norma originária do Código de Processo Penal, que data do ano de 1941, e que, portanto, já está incorporada ao patrimônio jurídico nacional e à prática judicante de todas as instâncias, sempre em prestígio à liberdade de ir e vir dos indivíduos. O que é peculiar nesse precedente é que pela via da reclamação, que tem por pressupostos a alegação de usurpação de competência do Tribunal ou a necessidade de assegurar a autoridade de suas decisões – além, é claro, da hipótese de descumprimento de súmula vinculante –, pode-se saltar todas as esferas do Poder Judiciário nacional e levar diretamente ao Supremo Tribunal Federal alegação de constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, mesmo que a reclamação seja absolutamente incabível e não tenha chances de prosperar, servindo apenas de veículo à impetração de habeas corpus diretamente na instância jurisdicional máxima do país.
Vale dizer, a quem tem os meios necessários, pode bater às portas do Tribunal para conhecer da legalidade da sua prisão, independentemente da autoridade judiciária prolatora da decisão e da hierarquia judiciária prevista na lei processual, para isso bastando o manejo de instrumento processual sabidamente incabível à situação, mas nele embutindo pedido subsidiário de habeas corpus de ofício.
Não fosse esse caminho, ao qual não muitos têm acesso – pois do contrário a Corte se veria abarrotada por [literalmente] milhões de processos –, deveria a defesa primeiro impetrar o writ junto ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, e, caso negado, interpor recurso ao Superior Tribunal de Justiça, de modo que apenas na negativa desse tribunal superior é que se abriria a via do habeas corpus ao Supremo Tribunal Federal, conforme competência prevista na alínea “i” do inciso I do art. 102 da Constituição Federal.
Caso semelhante que chamou também bastante a atenção, tanto pelo acesso direto à jurisdição da Corte, como pela nenhuma importância do instrumento processual que franqueou esse acesso, passou-se na concessão da ordem de habeas corpus proferida nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n. 444, pelo Ministro Gilmar Mendes, a partir de petição incidental manejada em setembro de 2018 pela defesa do ex-Governador do Estado do Paraná, Beto Richa, que se encontrava preso temporariamente por ordem expedida pelo juízo da 13ª Vara Criminal de Curitiba/PR.
Tratava-se de ação de controle concentrado – ADPF – que tinha por objetivo reconhecer a não recepção do art. 260 do Código de Processo Penal pela Constituição Federal de 1988, na parte em que autorizava a condução coercitiva do investigado ou do réu para a realização de seu interrogatório perante a polícia judiciária, nas investigações, ou o juiz, quando em curso ação penal. Em julgamento realizado no dia 14 de junho de 2018, o Plenário do Tribunal acolheu a tese, “para pronunciar a não recepção da expressão ‘para o interrogatório’, constante do art. 260 do CPP, e declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Em setembro do mesmo ano, portanto, três meses após o julgamento da ADPF n. 444, a defesa do ex-Governador Beto Richa atravessa petição nos autos da ação de controle concentrado de constitucionalidade pedindo o exame da (i)legalidade da sua prisão, conforme acima adiantado. Alegou que sua prisão temporária nada mais era do que uma maneira de contornar a impossibilidade de decretação de condução coercitiva e que, por isso, guardava pertinência com a ADPF.
Seus argumentos foram acolhidos pelo Relator, que, mesmo não reconhecendo a legitimidade do requerente para peticionar nos autos da ação, entendeu presentes os pressupostos para a concessão da ordem de habeas corpus de ofício, suplantando a competência originária do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná para conhecer da ilegalidade da prisão, como também a competência recursal do Superior Tribunal de Justiça de processar e julgar o recurso cabível contra o pronunciamento do Tribunal local.
Outro precedente nada ortodoxo podemos colher da medida cautelar concedida nos autos da ADPF n. 601, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade. A ação tinha por objetivo obstar e reconhecer a ilegitimidade constitucional da tramitação de inquérito policial ou de qualquer outro procedimento de investigação preliminar que visasse ao esclarecimento de como o jornalista Glenn Greenwald obteve o inteiro teor das mensagens trocadas na plataforma Telegram, por autoridades públicas responsáveis pela condução da Operação Lava-Jato.
Mesmo sem haver notícia nos autos da existência de inquérito direcionado ao jornalista, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, entendeu por demais relevantes os preceitos constitucionais da liberdade de manifestação do pensamento e de imprensa, que compreende o sigilo da fonte, e determinou “que as autoridades públicas e seus órgãos de apuração administrativa ou criminal abstenham-se de praticar atos que visem à responsabilização do jornalista Glenn Greenwald pela recepção, obtenção ou transmissão de informações publicadas em veículos de mídia, ante a proteção do sigilo constitucional da fonte jornalística”.
Em outras palavras, foi concedido um salvo conduto geral e antecipado ao jornalista, à guisa de uma verdadeira blindagem contra qualquer ação estatal que almejasse descobrir se ele tinha sido um mero receptor das mensagens hackeadas – portanto, de origem criminosa –, ou se de algum modo participara, direta ou indiretamente, do esquema que levou à prática do delito.
Arrisco dizer que, se de alguma forma havia o jornalista solicitado, financiado ou encomendado a invasão dos dispositivos móveis das autoridades públicas, a liberdade de imprensa e o sigilo da fonte não deveriam lhe socorrer, pois, conforme dispõe o art. 29 do Código Penal, “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Entretanto, isso jamais poderemos saber, pois o próprio ato de investigar está obstado no caso.
4. Do princípio da legalidade cerrada ao princípio da supremacidade aberta em matéria de direito penal incriminador.
Sobre o princípio da legalidade estrita em matéria de direito penal incriminador, peço licença para transcrever, pela clareza e contundência das suas razões, trecho do prefácio do Professor Cezar Roberto Bitencourt à 3ª Edição do livro Direito Penal Didático – Parte Geral, do Professor Fábio Roque, emérito criminalista e juiz federal no Estado da Bahia. In litteris:
“A gravidade dos meios que o Estado emprega na repressão do delito, a drástica intervenção nos direitos mais elementares e, por isso mesmo, fundamentais da pessoa, o caráter de ultima ratio que esta intervenção deve ter, impõem, necessariamente, a busca de um princípio que controle o poder punitivo estatal e que confine a sua aplicação em limites que excluam toda arbitrariedade e excesso do poder punitivo. O princípio da legalidade constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal. Embora seja hoje um princípio fundamental do Direito Penal, seu reconhecimento percorreu um longo processo, com avanços e recuos, não passando, muitas vezes, de simples “fachada formal” de determinados Estados absolutistas. Feuerbach, no início do século XIX, consagrou o princípio da legalidade através da fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine lege. O princípio da legalidade é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes totalitários o têm negado.
O princípio de reserva legal significa que a regulação de determinadas matérias deve ser feita, necessariamente, por meio de lei formal, de acordo com as previsões constitucionais a respeito. Nesse sentido, o art. 22, I, da Constituição brasileira estabelece que compete privativamente à União legislar sobre Direito Penal. A adoção expressa desses princípios significa que o nosso ordenamento jurídico cumpre com a exigência de segurança jurídica postulada pelos iluministas. Além disso, para aquelas sociedades que, a exemplo da brasileira, estão organizadas por meio de um sistema político democrático, o princípio de legalidade representa a garantia política de que nenhuma pessoa poderá ser submetida ao poder punitivo estatal, se não com base em leis formais que sejam fruto do consenso democrático.” (destaquei)
Apesar da convicção e da completa ausência de dubiedade nas palavras do Professor Bitencourt, acerca das quais não se levanta na doutrina uma voz contrária, o Supremo Tribunal Federal sentiu-se investido no poder de desrespeitar o valor jurídico, político e democrático do princípio da reserva legal em matéria de criação de tipos penais, ao determinar, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO n. 26, que a Lei n. 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, é juridicamente aplicável aos casos de homofobia e transfobia, a despeito desses elementos não constarem, nem expressa nem implicitamente, nos tipos penais da referida Lei.
Simplesmente, o Tribunal, por maioria, entendeu presente o estado de mora inconstitucional do Poder Legislativo em criminalizar essas condutas e ordenou que, enquanto o Congresso Nacional não sanar a omissão, a analogia incriminadora seria o caminho para contornar esse contexto de inconstitucionalidade.
Em um dos votos dissidentes, o Ministro Ricardo Lewandowski ponderou o óbvio, no sentido de que “a extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas pela norma incriminadora parece atentar contra o princípio da reserva legal, que constitui uma garantia fundamental dos cidadãos que promove a segurança jurídica de todos”. Para isso, colaciona vastos precedentes da Corte que reconhecem a impossibilidade do emprego da analogia penal in malam partem.
Observa-se dos votos vencedores manifestações que ressaltam a inadmissibilidade de atos de violência praticados contra homossexuais e transexuais, algo que, certamente, dentro de um Estado Democrático de Direito, não podemos tolerar, em nome do princípio da liberdade individual e do direito de autodeterminação da personalidade. No entanto, certo é que atos de violência, agressão e ameaça já são tipificados no ordenamento jurídico, na forma de tipos penais que tutelam eficazmente a integridade física, a vida e a paz individual de todas as pessoas.
O que o Tribunal pretendeu verdadeiramente não foi evitar crimes violentos contra certas pessoas em razão de sua orientação sexual, mas impor à coletividade em geral a transformação cultural que entendem mais pertinente, mediante a obrigatoriedade de aceitar certas crenças enxertadas de fora da mente da própria pessoa, algo que flagrantemente conflita com o direito individual de todos à autodeterminação e à liberdade de pensamento.
Podemos abordar a questão com essa dimensão, pois, ao passearmos nossas vistas sobre os tipos penais da Lei n. 7.716/1989, podemos verificar que há ali crimes de diversas ordens, não apenas crimes que tenham como elemento do tipo a violência ou a grave ameaça à pessoa. Trata-se de uma lei de combate ao racismo e que, portanto, tem legitimada a tradução de condutas preconceituosas em normas penais, na medida em que na consciência jurídica geral da nação dos dias de hoje há consenso de que a cor da pele da pessoa ou sua origem não podem impedir a participação na vida social de forma plena, mesmo nas relações tipicamente privadas, nas quais prepondera a autonomia da vontade.
Por essa razão, uma empresa não pode negar acesso a vaga de emprego por conta da cor da pele do candidato, ou, pelo mesmo motivo, negar a prestação de serviço que oferece ao público, justamente porque reconhecemos que não há escusas de consciência que possam amparar semelhantes comportamentos.
Todavia, o mesmo não se passa quanto ao homossexualismo e à transexualidade. Cuidam-se de escolhas de vida de algumas pessoas que conflitam com convicções e crenças religiosas legítimas de muitas outras pessoas, que não são obrigadas a aceitar passivamente a imposição de regras culturais em relação às quais licitamente discordam. Especialmente na esfera das relações privadas, não se pode impor unilateralmente, pela força do poder punitivo do estado, que pessoas aceitem o ultraje a suas consciências para satisfazer os anseios culturais de terceiros.
No ano de 2018, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América proferiu uma decisão paradigmática envolvendo essa questão. Em 2012, no Estado do Colorado, o confeiteiro Jack Phillips recusara-se a preparar um bolo de casamento para casal de pessoas do mesmo sexo, porquanto isso contrariava as suas convicções religiosas, mas ofereceu ao casal diversas outras opções de produtos de sua loja[9].
A situação foi parar na Comissão de Direitos Civis do Colorado, que aplicou multa ao confeiteiro, o qual, por sua vez, levou o caso à Suprema Corte. Pela ampla maioria de 7 votos a 2, a Suprema Corte deu razão a Phillips e entendeu que a Comissão estadual havia agido com inadmissível “hostilidade religiosa”, em desrespeito à Primeira Emenda. O placar demonstrou que a controvérsia não residia propriamente na dicotomia entre progressistas e conservadores, mas em algo que antecede a tudo isso e sem a qual nada mais é possível em uma sociedade democrática: a liberdade individual.
Aqui no Brasil, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a conduta de Phillips poderia ser enquadrada na forma do crime previsto no art. 8º da Lei n. 7.716/1989, que comina a pena de reclusão de um a três anos a quem “impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público”. Pela pena prevista, vê-se que se trata de crime de médio potencial ofensivo e que, por isso, não se sujeita às regras dos Juizados Especiais Criminais disciplinadas na Lei n. 9.099/1999. Incabível, portanto, na espécie, a aplicação dos institutos despenalizantes da composição civil dos danos e da transação penal.
De tudo o que o Supremo Tribunal Federal tem feito ao longo da última década, penso que o precedente firmado na ADO n. 26 é o mais representativo do espírito dominante na Corte. Não tenho como ver no julgado algo diverso do que um ato essencialmente político do Tribunal, visto que, num só lance, solapou os séculos de lutas pela limitação do poder punitivo do estado conformado pelo princípio da reserva legal e, junto a isso, o longo passado de lutas pela consolidação de sistemas políticos democráticos que cometem exclusivamente ao Parlamento, órgão político representativo máximo da população, a tarefa de disciplinar por lei formal certos assuntos, como a definição de crimes.
Não bastasse isso, o julgado também submete o exercício de liberdades e crenças que remontam às origens de nossos povos à grave ameaça da aplicação da pena. Esse precedente sinaliza que, permanecendo assim, dificilmente poderemos divisar no horizonte limites à extensão dos poderes da Corte.
5. O novo princípio acusatório do processo penal brasileiro.
O princípio acusatório é indubitavelmente estruturante do moderno processo penal, elemento normativo sem o qual estaríamos recuados no tempo em ao menos dois séculos. Sua origem nos reconduz ao princípio da separação de poderes, que tem como principal objetivo a divisão de competências estatais entre órgãos e colegiados distintos, sempre com vistas ao controle do poder pelo poder e à contenção do abuso em seu exercício.
Publicada em 24 de dezembro de 2019, a Lei n. 13.964, conhecida como Lei Anticrime, traz em sua ementa reflexo do seu conteúdo: Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal.
Entre os aperfeiçoamentos, deixou explícito em seu novo art. 3º-A, que “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Antes dessa inovação legislativa, que pela primeira vez falou de forma aberta sobre esse princípio estruturante do processo penal, o perfil acusatório do sistema brasileiro de justiça criminal decorria basicamente do inciso I do art. 129 da Constituição Federal, que atribui a propositura da ação penal pública exclusivamente ao Ministério Público, fulminando, portanto, a existência de procedimentos judicialiformes do passado, como a abertura de ação penal pela mera lavratura do auto de prisão em flagrante pela autoridade policial.
Mais que isso, esse dispositivo trouxe uma nova inteligência sobre a capacidade probatória do juiz na investigação criminal e no curso da ação penal. Comentando esse aspecto do dispositivo, os Professores Fábio Roque Araújo e Klaus Negri Costa[10] destacam que:
“... a Lei n. 13.964/19 não promoveu expressa revogação do art. 156, CPP, que permite ao juiz produzir prova de ofício nos seguintes casos: (I) ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; e (II) determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
O entendimento que deverá prevalecer, todavia, é no sentido de que o inc. I do art. 156, CPP, restou tacitamente revogado, por permitir a atuação probatória do juiz, de ofício, no curso das investigações, o que é vedado pelo art. 3º-A, CPP. Quanto ao inc. II do art. 156, CPP, ainda haverá grandes debates, uma vez que não há convergência de entendimentos quanto à possibilidade de o juiz, no curso do processo judicial, determinar a produção de provas de forma excepcional.”
Podemos observar quão ricos e profícuos são os debates doutrinários e jurisprudenciais que esse tema suscita e demanda desenvolvimento intelectivo, certamente sempre orientado por aspirações de justiça, para, assegurando-se a imparcialidade do julgador, tornar o processo penal mais equilibrado, justo e garantidor de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.
Contudo, a despeito da estrutura jurídica do processo penal constitucional, o Supremo Tribunal Federal não se viu limitado por considerações de ordem meramente jurídica, como essas, dando a impressão de que a ele são inaplicáveis.
Valendo-se do art. 43 do Regimento Interno do Tribunal, que é anterior à Constituição Federal de 1988, o então Presidente da Corte, Ministro Dias Toffoli, em despacho do dia 14 de março de 2019, determinou a instauração do Inquérito n. 4.781, a fim de investigar “notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que tem o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito”.
O primeiro aspecto que provoca questionamento diz respeito à recepção do art. 43 do Regimento Interno pela Constituição Federal de 1988. Para o autor do único voto dissidente, Ministro Marco Aurélio, o dispositivo não foi recepcionado. Além dessa questão, a interpretação da norma também foi um tanto criativa. Diz ela que, “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.
“Sede ou dependência do Tribunal” são palavras que remetem ao espaço físico onde funciona o Tribunal. Mas, a fim de fundamentar a abertura da investigação, o Ministro Dias Toffoli argumentou que os ministros são o Tribunal, portanto, quaisquer ofensas dirigidas a eles atinge o Tribunal, incluindo, assim, no conceito de sede ou dependência, a pessoa dos integrantes da Corte, em qualquer local do território nacional em que se encontrem.
Dessa forma, foi aberto inquérito sem fato determinado nem sujeitos potencialmente investigados, permitindo que qualquer acontecimento do passado, do presente e do futuro, cometidos por qualquer pessoa e em qualquer circunstância, podem vir a constituir objeto de apuração pelo Tribunal em regime de autotutela.
Designado Relator, sem distribuição aleatória, mas por simples escolha do Presidente do Tribunal – em acachapante ofensa ao princípio do juiz natural –, o Ministro Alexandre de Moraes apôs sigilo ao Inquérito 4.781, que perdura até a data de fechamento deste texto, em 26 de junho de 2021, somente havendo notícia de que investigados tiveram franqueado o acesso aos autos das investigações em 2 de junho de 2020, logo, mais de um ano após a abertura do procedimento[11].
Debalde a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, tentou promover o arquivamento do Inquérito, à vista das ilegalidades e inconstitucionalidades verificadas. Em decisão de 16 de abril de 2019, o Relator rejeitou o apelo da Procuradoria-Geral e manteve aberta a investigação[12].
Passado o tempo, ascende ao palco dos eventos o famigerado vídeo gravado pelo Deputado Daniel Silveira, do PSL do Estado do Rio de Janeiro, por ele divulgado em suas redes sociais, em que, por aproximadamente dezenove minutos, manifesta seu posicionamento de repúdio à postura política adotada pela Corte, oportunidade em que expõe muito da sua visão de mundo e modo de ser. Profere palavras duras, críticas, mas também ofensivas à imagem e à dignidade de Ministros do Supremo Tribunal Federal, sem, no entanto, transparecer a força de alguém capaz de subverter a ordem constitucional ou romper com a ordem democrática e o Estado de Direito. Trata-se apenas de um Deputado Federal.
A responder pelo plantão judiciário, já que estávamos em uma terça-feira de carnaval, dia 16 de fevereiro de 2021, o Presidente do Tribunal, Ministro Luiz Fux, conforme por ele revelado em entrevista concedida à imprensa[13], tomando conhecimento do vídeo, resolveu que era o caso de mandar prender o Deputado. Poderia fazê-lo de mão própria, já que em regime de plantão, mas trocou impressões com o Ministro Alexandre de Moraes, Relator do Inquérito das Fake News, que, assumindo o caso, expediu, na mesma data, mandado de prisão em flagrante em desfavor do parlamentar, ao abrigo de dispositivos da Lei de Segurança Nacional e do Código Penal.
Menos de 24 horas após o cumprimento do mandado de prisão em flagrante pela Polícia Federal, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, às 17h01 do dia 17 de fevereiro de 2021, oferece denúncia contra o Deputado perante o Supremo Tribunal Federal. No mesmo dia, o Pleno do Tribunal ratifica à unanimidade a ordem de prisão expedida pelo Ministro Relator. Também por unanimidade, o Pleno do Tribunal, em 28 de abril de 2021, recebeu a denúncia oferecida contra o parlamentar, tornando-o réu na Ação Penal n. 1.044.
Se olharmos para todo o contexto, desde a instauração do Inquérito n. 4.781 em 2019, passando pela tramitação da prisão do Deputado na Corte, curiosamente podemos observar que a denúncia da Procuradoria-Geral da República não passou de simples incidente processual, porquanto o próprio Tribunal que julgará o parlamentar foi: a) o responsável pela abertura de investigações de potenciais crimes cometidos contra seus próprios membros; b) o ordenador da prisão; e c) o instaurador do processo. Reunidos estão, portanto, na mesma pessoa, as figuras e as funções de vítima, investigador – assim, consequentemente, responsável por subsidiar o órgão acusador na formação da sua opinio delicti – e de julgador.
Há outros tantos questionamentos jurídicos importantes que cercam o caso – como a caracterização do flagrante pelo vídeo postado na internet e a inafiançabilidade do crime pelo cabimento, em tese, da prisão em flagrante. Não se discute aqui, outrossim, se a conduta do parlamentar constitui crime e em quais tipos penais poderiam ser enquadrados, embora não a vejamos com a potencialidade lesiva sustentada na prisão e na denúncia.
A questão que define o rompimento desses procedimentos com a esquecida Ciência do Direito está relacionada com o total abandono do direito do réu de ser julgado por um juiz imparcial e independente. Resta acompanhar para vermos se o ressurgimento do princípio inquisitivo em nosso Processo Penal terá sido excepcional ou se, entre tantas excepcionalidades, veio para ficar.
6. Da assunção de funções típicas do Poder Legislativo.
Outro aspecto fundamental que tem caracterizado o funcionamento do Supremo Tribunal Federal na República brasileira é a tomada de decisões que têm por objeto a interferência direta em afazeres internos dos demais poderes, substituindo-se à vontade política que deveria permanecer exclusivamente na órbita de poder definida na Constituição. Não se trata de mero controle de constitucionalidade, mas de adotar posição ativa no processo decisório como se a competência do Tribunal permitisse a transferência de atribuições alheias para dentro de sua esfera.
A seguir veremos alguns casos interessantes que confirmam essas asserções. Pelos limites do presente artigo, não nos aprofundaremos no conteúdo das decisões, de modo que serão abordados os aspectos processuais mais relevantes para a visualização do quanto aqui alegado.
6.1 Supressão do poder de emenda no processo legislativo.
A Constituição Federal, em seu art. 63, I e II, traz regramento restritivo ao poder de emendamento parlamentar a projetos de lei de iniciativa de outros Poderes e do Ministério Público, notadamente para preservar a independência e a autonomia financeira desses órgãos. Outra limitação ao poder de emendamento parlamentar foi razoavelmente erigido jurisprudencialmente no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 5.127, que declarou a incompatibilidade do rito de tramitação – de urgência constitucional – de projeto de lei de conversão com o oferecimento de emendas que não guardem relação de pertinência com a matéria tida por relevante e urgente no texto da medida provisória, proibindo-se, assim, os chamados “jabutis”.
Afora as limitações previstas na Constituição ou dela diretamente decorrentes, não deve haver peias à capacidade de discussão e votação parlamentar em matérias que trafegam pelas Casas Legislativas, porquanto as Casas não são meras ratificadoras de decisões externas, podendo apreciar com largo alcance as proposições, modificá-las e também rejeitá-las.
Nessa linha, o art. 252 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados traz as regras de tramitação de projeto de lei de iniciativa popular na Casa, conforme previsto no § 2º do art. 61 da Constituição. A lógica dessas regras, que são compatíveis com a Constituição, é basicamente permitir a participação da sociedade ao longo da tramitação da proposta, vedando-se a rejeição da proposição por aspectos meramente formais, seguindo-se, no mais, as regras de tramitação dos projetos de lei em geral. Em outras palavras, a diferença reside apenas na forma e na legitimidade para apresentação do projeto.
O precedente aqui em análise teve lugar na tramitação do projeto de lei n. 4.850/2015 na Câmara dos Deputados, conhecido como “Dez Medidas de Combate à Corrupção”, capitaneado por representantes do Ministério Público e entidades da sociedade civil, mediante protocolo de pilhas de papel contendo milhões de assinaturas.
Porque inexistente no ordenamento jurídico a previsão da competência e da forma de certificação da capacidade política do cidadão subscritor de projeto de lei de iniciativa popular, a Câmara dos Deputados sedimentara prática institucional, nos poucos casos em que que aportou na casa proposição popular, de receber o projeto e as listas de assinaturas, mas, dada a impossibilidade de certificação das assinaturas – porquanto os dados necessários a esse cotejo são administrados pela Justiça Eleitoral –, apenas dar tramitação à proposta após subscrita por parlamentares que a apadrinhem, resolvendo assim o problema da legitimidade, emprestando-se, no mais, o rito próprio da iniciativa popular.
Em Plenário, foi incorporada ao texto do Projeto de Lei n. 4.850/2015 emenda apresentada pelo então Deputado Weverton Rocha, que tratava da criação de novos tipos penais de abuso de autoridade, especialmente aplicáveis a magistrados e a membros do Ministério Público. Em face disso, o Deputado Eduardo Bolsonaro impetrou no Supremo Tribunal Federal o Mandado de Segurança n. 34.530. Na apreciação do pedido de liminar veiculado no writ, o Ministro Luiz Fux determinou o retorno da proposição à Câmara, porquanto já remetida ao Senado Federal, para a sua reautuação como projeto de lei de iniciativa popular e reapreciação da matéria, entendendo que o capítulo dedicado aos delitos de abuso de autoridade de magistrados e membros do MP feria o sentido original da proposta.
A Câmara dos Deputados, então, arranja um sistema de verificação da existência de assinaturas – algo diverso de certificar a condição de cidadão dos subscritores –, autua a proposta como de iniciativa popular e restitui o processado ao Senado Federal, exatamente como deliberado anteriormente, ou seja, sem reapreciá-lo.
Talvez pressentindo a derrota de sua tese em Plenário, o Ministro Luiz Fux deu-se por satisfeito e, em 17 de fevereiro de 2017, extinguiu o processo, sem resolução de mérito, com fundamento no art. 485, IV do Código de Processo Civil – ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo –, por considerar que a liminar havia sido satisfeita, falecendo interesse na continuidade da decisão (caso em que a fundamentação deveria ter se amparado no inciso VI do art. 485).
O interessante dessa decisão é a confirmação de que o direito processual é maleável e adaptável a estratégias político-institucionais dos membros do Tribunal, porquanto a liminar não foi satisfeita e, mesmo se tivesse sido, não teria o condão de retirar a apreciação do mandado de segurança do órgão competente, o Plenário do Tribunal.
6.2 Indicação de outros precedentes peculiares.
Em liminar concedida no dia 5 de abril de 2016 nos autos do Mandado de Segurança n. 34.087, o Ministro Marco Aurélio determinou que a Câmara dos Deputados abrisse processo de impeachment em desfavor de Michel Temer, que, àquela data, ainda era Vice-Presidente da República, considerando-se que o afastamento da Presidente Dilma Rousseff apenas se deu com a abertura do processo por crime de responsabilidade no Senado Federal, no dia 12 de maio do mesmo ano.
O fundamento do decisum era de que Michel Temer também assinara, no ano de 2015, decretos de abertura de crédito suplementar em desrespeito às metas fiscais, assim como Dilma Rousseff. Acontece que os decretos assinados por Temer foram datados do primeiro semestre de 2015, ao passo que os de Dilma do segundo semestre, quando relatórios fiscais oficiais já indicavam a necessidade de contingenciamento de gastos públicos a fim de respeitar a meta anual. Não apenas Dilma não contingenciou, como abriu mais de cem bilhões de reais em créditos suplementares, resultando no desastre financeiro daquele e dos anos seguintes.
O fato de que a abertura de processo de impeachment é e deve ser de natureza excepcional na vida da República e que esse evento depende da reunião de fatores políticos, sociais, econômicos e jurídicos bastante fortes não impediu que o Ministro do Supremo Tribunal Federal se visse em condições de substituir todos esses elementos conjunturais e impor sua decisão como suficiente a esse desiderato. Cuidou-se, todavia, de decisão inócua, porquanto as Lideranças Partidárias da Câmara dos Deputados não se movimentaram para constituir a respectiva comissão especial, contexto que perdurou até o fim do mandato do Presidente Michel Temer.
Ainda em sede de processo de impeachment, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF n. 378, declarou a nulidade da formação da comissão especial da Câmara dos Deputados para emitir parecer à denúncia oferecida contra a ex-Presidente Dilma Rousseff, porquanto a eleição de seus membros havia contado com a candidatura de parlamentares não indicados pelo Líder da sigla a que cabia a vaga. Estamos falando, portanto, de candidaturas avulsas de membros do mesmo partido ao qual compete preencher a vaga, algo absolutamente admissível tanto no texto expresso dos arts. 8º do Regimento Interno da Casa e 19 da Lei n. 1.079/1950, que fala que a denúncia será despachada a uma comissão especial eleita, como nos costumes amplamente aceitos em eleições internas em geral, porquanto a providência respeita integralmente o princípio da proporcionalidade partidária ao restringir a candidatura avulsa a integrantes da mesma bancada.
Contudo, uma vez mais, o Pleno do Supremo Tribunal Federal resolveu dar a sua própria visão de mundo ao que entendia correto ou mais adequado àquele contexto político específico. Decidiu que a palavra “eleição” prevista na Lei não era bem uma “eleição”, dizendo que:
“em rigor, portanto, a hipótese não é de eleição. Para o rito de impeachment em curso, contudo, não se considera inválida a realização de eleição pelo Plenário da Câmara, desde que limitada, tal como ocorreu no caso Collor, a ratificar ou não as indicações feitas pelos líderes dos partidos ou blocos, isto é, sem abertura para candidaturas ou chapas avulsas.”
Estabeleceu-se, assim, um conceito de eleição incompatível com a ideia de escolha, mas atrelada à simples aceitação de uma decisão tomada por terceiro, contra tudo o que sempre se praticada dentro da Câmara dos Deputados em matéria eleitoral interna.
Por fim, faço referência a um precedente que, com a máxima devida vênia ao Ministro que proferiu a decisão, retrata quadrante que poderíamos qualificar como de um “vale tudo processual”.
No último dia do ano judiciário de 2018, 20 de dezembro, o Ministro Marco Aurélio exarou decisão concessiva de liminar nos autos do Mandado de Segurança n. 36.169, para determinar que a eleição da Mesa Diretora do Senado Federal a ocorrer em sessão preparatória do dia 2 de fevereiro de 2019 se desse de forma aberta, para que o público pudesse perscrutar a vontade política dos seus representantes eleitos.
Em face dessa liminar, a Mesa do Senado Federal ajuizou a Suspensão de Segurança n. 5.272 junto à Presidência do Tribunal, pedindo a cassação da decisão monocrática do Ministro Relator do Mandado de Segurança, a fim de preservar a independência do Poder Legislativo em assunto tipicamente interna corporis, que encontrava no art. 60 do respectivo Regimento Interno a regra de votação secreta para a eleição da Mesa, como praxe antiga das duas Casas do Congresso Nacional.
Prontamente, o Presidente do Tribunal, Ministro Dias Toffolli, acolheu o pedido liminar da Mesa do Senado e suspendeu a decisão monocrática do Ministro Marco Aurélio, ressaltando a todo momento a necessidade de preservação da harmonia entre os poderes.
Acontece que no dia da eleição da Mesa do Senado Federal, em 2 de fevereiro de 2019, o Plenário da Casa, pelo voto favorável de 50 dos seus membros – formando, assim, maioria absoluta, ao passo que, em regra, questões regimentais exigem apenas maioria simples –, decidiu que a eleição seria aberta, não mais secreta, superando topicamente a norma regimental do art. 60.
Partidos descontentes com a deliberação da maioria absoluta do Senado Federal atravessam então petição nos autos da Suspensão de Segurança n. 5.272, alegando descumprimento da decisão, que havia confirmado a independência do Senado para decidir sobre o assunto.
Invertendo o sinal de sua decisão anterior, o Ministro Presidente anulou, em decisão proferida na madrugada do dia 3 de fevereiro de 2019, a deliberação do Plenário da Casa Legislativa que decidira pela forma aberta de registro dos votos. Isto é, nos mesmos autos do processo em que, semanas antes, havia sido proferida decisão assecuratória da independência do Senado Federal e da imperecível necessidade de harmonia entre os poderes, agora era anulada deliberação colegiada da mesma Casa Legislativa tomada em face de matéria inquestionavelmente interna, sem qualquer reverberação em norma constitucional, solapando a almejada harmonia.
Argumentou o Ministro que a deliberação do Plenário do Senado havia sido açodada e casuística. Logo, uma decisão externa, não menos casuística, teve de suplantar a vontade da maioria “casuística” do Senado: a vontade do Supremo.
7. Conclusão.
Os debates em torno dos limites da jurisdição constitucional em face das competências dos Poderes Executivo e Legislativo remontam aos primórdios do controle de constitucionalidade no constitucionalismo moderno e contemporâneo. Nesse terreno, prepondera, em geral, a necessidade de construção de barreiras que impeçam o amesquinhamento do princípio da separação de poderes, fazendo com que a evolução da jurisdição constitucional, não podendo ser evitada, ocorra de maneira cautelosa e prudente, dentro se uma visão orgânica e sistêmica do texto constitucional.
Pelo que tenho acompanhado do exercício da jurisdição constitucional no Brasil ao longo dos últimos quatorze anos, não consigo ver senão um brutal processo de mutação institucional em que prepondera a lógica de que quem tem poder de falar por último, pode falar por último em qualquer assunto da República, como se a competência se justificasse a si mesma, e não em face do todo normativo de onde emana.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi inspirada por constituições democráticas do pós-segunda guerra de países da Europa ocidental e pela experiência constitucional brasileira que nos conecta a 1824, ano de nossa primeira Carta Política.
Em razão dessas fontes e do conjunto normativo contido no texto constitucional em vigor, deveríamos concluir que a guarda da Constituição fora delegada a um órgão jurisdicional, que tem a árdua tarefa de, interpretando e aplicando cientificamente o Direito, com a devida sensibilidade política e conjuntural, manter o quadro de funcionamento dos poderes da República dentro do traçado principiológico estabelecido na Constituição, aparecendo na cena dos acontecimentos de forma pontual e relevante.
O que se observa na realidade brasileira é o oposto. Vemos um Tribunal que participa dos assuntos mais comezinhos da República, com abrangência universal, em constante desrespeito ao espaço de discricionariedade e liberdade de conformação que aproveitam à Presidência da República e ao Congresso Nacional.
Fala-se hoje, no Brasil, que, mais importante do que as alianças formadoras da base presidencial no Congresso Nacional, é saber se o mandatário máximo da nação eleito contará com o apoio do Supremo Tribunal Federal ou não, porquanto todo seu programa de governo pode não passar de nada, caso seus elementos essenciais sejam barrados pelo Tribunal, e, como vimos, instrumentos e meios para isso não faltam em nosso sistema.
Ante essas considerações e os elementos colhidos da realidade constitucional brasileira, é factível concluir que apenas um órgão de natureza política pode assumir tamanha relevância e extensão de poderes, colocando-se como peça central do funcionamento da República.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] Um livro muito bom sobre Ciência do Direito, importante e útil tanto a estudantes de primeiro ano da faculdade como a operadores do Direito no exercício da profissão, cito, do eminente jurista e historiador português, SARAIVA, José Hermano. O que é o direito? A crise do direito e outros estudos jurídicos. Portugal: Editora Gradiva, 2009.
[2] ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.
[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2001. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2007.
[4] MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III. Coimbra: Coimbra Ed., 2008. MIRANDA, Jorge. Divisão do Poder e Partidos Políticos. in. O Direito – ano 133º, III, Jul./Set. 2001. MIRANDA, Jorge. Inconstitucionalidade por Omissão. in. Estudos sobre a Constituição – 1º Vol. 1977. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional Tomo II. 5ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional Tomo IV. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional Tomo VI. Coimbra: Coimbra Editora, 2001
[5] COSTA, José Manuel M. Cardoso. A Jurisdição Constitucional em Portugal. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007.
[6] MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. (Trad.) Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.
[7] Sobre o tema, cf. o clássico: PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1989.
[8] Intitulada: Texto e Realidade – Pressupostos necessários à compreensão do controle judicial das omissões legislativas: um exemplo do caso brasileiro.
[9]Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-06/supremo-dos-eua-absolve-confeiteiro-que-negou-bolo-para-casamento. Acesso em 23.6.2021.
[10] ARAÚJO, Fábio Roque; COSTA, Klaus Negri. Processo Penal Didático. 4ª Edição. Editora Juspodium: Salvador, 2021 – p.29.
[11] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/02/alexandre-de-moraes-permite-acesso-de-investigados-ao-inquerito-das-fake-news.ghtml. Acesso em 25 de junho de 2021.
[12] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-rejeita-arquivamento.pdf. Acesso em 25.6.2021.
[13] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/sociedade-nao-esta-preparada-para-carta-de-alforria-da-camara-a-deputado-preso-diz-fux.shtml. Acesso em 25.6.2021.