BATMAN, O CAVALEIRO ARISTOTÉLICO DAS TREVAS, O GUARDIÃO SILENCIOSO DA VIDA BOA E O PROTETOR ZELOSO DA ÉTICA DA VIRTUDE

Autora: André Gonçalves Fernandes

Graduado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Graduado em filosofia pela Faculdade de São Bento (SP). Mestre, Doutor, Pós-Doutor e Pesquisador em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP (Grupo Paideia). Pós-Doutorando em Lógica e Epistemologia pela UNICAMP (PPPD-CLE). Pós-Doutor em Antropologia Filosófica e Visiting Scholar pela Universidade de Navarra (ESP). Parecerista da Revista Jurídica IURIS POIESIS e DIGNITAS (Qualis A2). Professor Titular de metodologia jurídica e de filosofia do fireito do CEU Law School. Professor de antropologia filosófica, hermenêutica e filosofia moral da Universidade Invenio. Juiz de Direito (TJSP). Juiz Formador da EPM (Escola Paulista da Magistratura) e da ENFAM (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados). Articulista do Gazeta do Povo (Curitiba). Ex-Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB (2014/2016). Membro da da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e escritor de livros publicados no Brasil e no Exterior e autor de artigos científicos em revistas especializadas. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras e membro honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.


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Como citar esse texto:

FERNANDES, André Gonçalves. Batman, o cavaleiro aristotélico das trevas, o guardião silencioso da vida boa e o protetor zeloso da ética da virtude. Revista JusLogos, ano I, Setembro de 2021, nº 01, págs. 35 a 51.

Resumo: A partir da aguda visão aristotélica, veremos como a conduta ética abrange todo âmbito do agir humano, sempre no seio de um dado quadro existencial caracterizado por sua contingência e suas circunstâncias concretas, mas sempre tensionado rumo à vida boa e galvanizado pela ação das virtudes, entendidas como apetite racional para o bem.

No mundo das histórias em quadrinhos (HQ), uma vida pautada pelas virtudes é explicitamente caracterizada no modo de ser de um dos maiores heróis deste universo: Batman. É o herói mais real e humano, se comparado aos demais, e é por isso que sua persona exerce grande atrativo junto ao público, também porque ele não só sabe o que são as virtudes, mas as vive na prática e, assim, inspira os demais a seguir o mesmo exemplo.

Palavras-chave: Ética; Ética da virtude; Vida boa; Batman

1. Introdução

O fenômeno ético é inerente e exclusivo do homem, ainda que, algumas vezes, atribua-se aos animais e plantas qualificativos de natureza ética. Por exemplo, diz-se do cão bem adestrado, que ele é fiel; do cavalo que supera caminhos íngremes, que ele é corajoso; de uma copa grande de uma árvore, que tem uma sombra generosa. E assim por diante. Tais afirmações éticas são impróprias, ainda que traduzam uma ideia unívoca no âmbito do senso comum.

A conduta ética abrange todo âmbito humano. Começa pela orientação da decisão interior e termina com a ação exterior, no seio de um dado quadro fático caracterizado por sua contingência e suas circunstâncias concretas. Seu sentido elementar transita pela eleição de uma conduta que prestigie o bem e evite o mal nos inúmeros planos e papéis da existência humana.

Na primeira parte, veremos que, com Aristóteles, mais do que com Platão, a teoria ética elabora-se sobre uma base formada a partir de estruturas morais previamente existentes na sociedade grega do século IV a. C., e procura, ao cabo, justificar a escala dos valores e das normas de condutas aceitas pela consciência comum daquela época, onde a escravidão, uma das colunas dessa sociedade histórica, foi por ele racionalmente justificada e exigida pela natureza[1].

Segundo a ética aristotélica, a experiência humana tem um papel fundamental: a atuação do homem prudente, a opinião dos mais velhos, sua vivência existencial e os costumes da polis representam dados indispensáveis, a ponto de extrair, por indução, seus princípios racionais, motivo pelo qual confere um denso espaço para os dados empíricos e psicológicos que podem ser coletados em muitos capítulos da Ética a Nicômaco.

Consciente da natureza ética do homem, Aristóteles propôs uma justificação teleológica dos valores e regras morais em função de um fim último, situado no plano da existência terrena e hierarquizado pela contemplação no ápice de sua felicidade (eudaimonia), para o qual todas as ações virtuosas do homem devem convergir.

A fim de possuir o bem supremo, o homem deve, por um lado, regular as funções inferiores por intermédio da razão e, por outro, desenvolver as virtualidades do espírito, situadas sempre no meio – entendido como o ápice da excelência e não como a mediocridade – de dois vícios opostos.

Na segunda parte, procuraremos destacar alguns atributos daquele que reputamos o maior herói de histórias em quadrinhos (HQ). Por quê? Várias são as razões. Batman[2] é o personagem mais complexo que já foi criado no universo HQ, tanto do ponto de vista existencial de seu mundo, quanto de seu perfil psicológico e moral. Batman é o herói mais vezes retratado pela indústria do entretenimento: foram (e são) desenhos, seriados, documentários e filmes cinematográficos ao longo de sete décadas.

Nosso herói mascarado também exerce um fascínio virtuoso em cada um de seus fãs no mundo todo. Ele não foi enviado de outro planeta, não foi picado por um aracnídeo, não foi infestado por radiação alfa, não tem poderes divinos ou carrega um gene mutante em seu DNA: ele é “apenas” um ser humano, embora bem diferenciado em muitos aspectos.

Ele moveu sua vida alimentado pelo desejo de justiça, a fim de que outros não tivessem o destino trágico de seus pais. E, movido pela esperança, sempre protegeu Gotham City, muitas vezes arriscando a própria vida.

Ele dedicou anos e anos de treinamento físico e mental a beirar a perfeição e, mesmo como um bilionário, renuncia a todos os luxos que isso poderia lhe proporcionar em prol de um objetivo que julga maior e que dá sentido a sua vida, tanto como Bruce quanto como o Batman.

Por que ele fez isso? Seus atributos são virtuosos? O que demonstram sua corajosa exposição de vida, todas as noites, em prol alheio, sua devoção à missão de buscar justiça, seu pensamento magnânimo ao proteger Gotham dos criminosos, sua generosidade ao se dispor mais aos outros do que para si, sua ação sempre pautada pela prudência e uma vida ascética sem descanso? São perguntas filosóficas que buscarão uma contribuição aristotélica para suas respostas.

2. Antecedentes da ética aristotélica: Homero, Sócrates e Platão

A ideia de construir uma disciplina filosófica própria, com o nome de ética, foi de Aristóteles (384-322 a. C.). Segundo Gauthier (1970, p. 46-54), a elaboração desse novo ramo levou duas etapas. Na primeira, quando estava na Ásia Menor depois da morte de Platão (347 a. C.), deu corpo ao primeiro curso de ética que recebeu o nome de Ética a Eudemo.

Na segunda[3], já em Atenas, depois do ano 335, introduziu-lhe modificações e inovações, resultando na Ética a Nicômaco. E, paralelamente às duas obras, conduziu cursos de política que se transformaram na Política, cuja lavra, como será visto adiante, foi consequência natural da proposta ética contida naqueles livros, mas ampliada ao contexto da polis.

A ética, como um corpo próprio, epistêmico e autônomo de um saber, veio como uma resposta, no bojo do método propriamente aristotélico de investigação filosófica, aos problemas práticos da vida na polis, evitando, por um lado, as dificuldades das propostas dos sofistas e, de outro, dando prosseguimento ao caminho desbravado por Sócrates, com a superação de suas deficiências. Mas, para isso, foi preciso um longo caminho histórico.

O advento de sucessivas poleis gregas, a partir do século VIII a. C., proporcionou alguns problemas de convívio e de cooperação entre seus habitantes. Até então, o paradigma ético residia no legado histórico-literário homérico (composto no século IX a. C.), com um ideal de homem virtuoso que já não mais atendia aos anseios do cidadão grego. O ethos da obra homérica lastreava-se na areté ou excelência dos chefes das famílias aristocráticas, consistente na aptidão retórica e guerreira geradora de honra e prestígio sociais.

Para reverter o quadro de litigiosidade, foi introduzido o nomos ou lei, a fim de que novas formas de capacidade e de virtudes ganhassem corpo social, em superação das antigas aretai em estado de agonia, no contexto racional da polis e de seu equilíbrio proporcionado pela boa lei. O desenho teórico e empírico da nova areté visava justamente a capacidade de moderar os desejos individuais, a irascibilidade (típica do guerreiro) e as emoções particulares em prol dos ditames legais.

Mas os sofistas logo submeteram o nomos ou a lei a uma crítica acertada, de tal sorte que a solução legal logo pareceu inconsistente: como mestres da retórica e pessoas cosmopolitas, acusaram a diversidade desse paradigma legal, reduzindo-o ao campo do estritamente convencional, o que fomentaria a canalização exclusiva das demandas decorrentes do poder dos mais fortes.

Daí a importância atribuída à techne retórica por eles ensinada, de maneira que sua argumentação mais convincente pudesse fazer impor, pelo consenso, os interesses diretamente buscados. Inclusive, a arbitrariedade criada por uma ideia de lei, fruto de uma mera convenção sem lastro no justo natural, fora tratada por Sófocles em Antígona (século IV a. C.), obra contemporânea ao período aqui enfocado.

Por outro lado, Sócrates (469-399 a. C.) foi um formidável adversário da proposta sofista, a qual, segundo o filósofo, correspondia a um saber falso e aparente (a opinião, doxa) que se camufla na argumentação retórica. Nessa empreitada que lhe custou a vida depois de uma dose de cicuta, Sócrates atuou em duas frentes: refutou a pretensão sofista de possuir pela via da techne retórica o saber sobre as virtudes da polis e propôs uma alternativa de saber verdadeiro e universal acerca da justiça, a mesma justiça que Antígona fez prevalecer diante da iníqua lei de Creonte.

Na primeira frente, Sócrates tentou demonstrar que a techne sofista era ambivalente, na medida em que era apta a produzir injustiça também. Na segunda frente, no afã de tentar resolver o problema prático do equilíbrio entre o individual e o social, fundamentado na premissa de que a justiça deveria justamente provocar a moderação dos desejos que muitas vezes se sobrepunham aos requerimentos da vida em sociedade, questionou o modo de vida desmedido, inspirado na hybris, que, segundo ele, não proporcionaria a eudaimonia da comunidade e, indiretamente, de seus membros.

A saída socrática consistiu na apropriação do cuidado da alma, influenciado pelo orfismo e pelo pitagorismo: extraiu do contexto religioso o pensamento da alma, colocando-o no centro e no fim de seu discurso moral, para “fundar sobre a concepção da alma como ‘verdadeiro eu’ aquela equação de justiça e felicidade que, sem esse suplemento, como se viu, parecia não poder com os golpes da crítica sofista” (VEGETTI, 1989, p.91)[4].

A justiça realizar-se-ia, então, somente na alma, como fruto de uma vida examinada, regulada por uma episteme, uma ciência de justiça que sabe discernir o certo e o errado. A equação formada por justiça, felicidade, ciência e virtude na alma era uma conclusão que podia ser válida para Sócrates, que reputava a alma como imortal e atemporal.

Entretanto, seu zelo pela vida refletida portava uma aporia interna que a investigação platônica não só não resolveu como acentuou ainda mais: entre Sócrates e a polis, foi aberto um dissídio, porque a polis rejeitou a mediação socrática entre a alma e a polis, culminada com a condenação do filósofo numa sociedade em que não havia espaço para seu saber inovador.

Platão herdou o problema acerca da episteme da justiça, que assegura ordem à alma individual e à comunidade e, na República, procurou superar as dificuldades internas da filosofia socrática. Para ele, a postura socrática não considerava dois conflitos internos, o da polis, revelado pela constante oposição entre abastados e pobres, e o da alma, dramatizado na tragédia do teatro grego.

Sua proposta de episteme deveria, então, criar condições para o império simultâneo da justiça tanto na polis quanto na alma, pois a sociedade é homem escrito com letras maiúsculas: “não há indivíduo justo a não ser numa sociedade justa, mas não há sociedade justa se não o são, desse ponto de vista, os seus membros singulares.

Parece, aliás, que, desse ponto de vista, a moral individual tem prioridade: os costumes da polis são os dos seus cidadãos” (VEGETTI, 1989, p.117). Por isso, na República, Platão inicia com a justiça da cidade (Livros II e III) e passa para a justiça da alma (Livro IV).

Nos dois âmbitos, as partes distintas do conflito são reconduzidas a um todo ordenado a um fim único: a felicidade na polis como corolário da felicidade de cada alma, por intermédio da atuação da justiça, caracterizada como aquela ordem em que cada parte desenvolve uma função específica no todo, segundo uma específica excelência ou virtude.

E a ordem é estabelecida por uma ciência em cada segmento social: a sophia, restrita dos governantes da cidade; para os guerreiros, era a coragem e, para os produtores, a temperança. Cada uma delas atuando dentro de seu respectivo âmbito de destinatários. Paralelamente, no interior da alma, inovando na tradição de então, surge a tripartição da alma platônica. A parte racional era governada pela sophia, a parte irascível pela coragem e a parte concupiscível pela temperança.

A ordem das partes no todo decorre de um saber específico, que abarca a ideia das inúmeras partes num todo à luz da ideia suprema de uma totalidade ordenada segundo uma ideia de Bem. Tal fato não decorre da experiência e não é deduzível a partir dos fenômenos mutáveis do mundo sensível. É inato e provém da anamnese, deduz-se da visão das ideias que foram previamente inscritas na alma de cada homem. Entra em cena Aristóteles.

Aristóteles herdou o legado platônico e continuou na busca do saber sobre a ordem na alma e na polis, mas submetendo-a a partir de outro método, a fim de vencer as vicissitudes subjacentes na resposta platônica. E suas ideias não só marcariam sua época, mas seus influxos constituiriam um imponente substrato do pensamento moral ocidental até os dias atuais.

3. A ética aristotélica, a ética das virtudes

Sem delongas, Aristóteles logo notou a principal aporia no ideário platônico: a separação (chorismós) entre mundo inteligível e mundo sensível, cuja relação era fundada pela correspondência das coisas às ideias.

Sob o ângulo da polis, tal cisão demandava o conhecimento das ideias por via da reminiscência (anamnese), o que provocava um choque radical com o senso comum, segundo o qual o acesso ao saber era fruto do embate entre as opiniões dos cidadãos.

Como efeito, as relações entre o governante-filósofo e a polis seriam um tanto dissonantes, aporia essa que, segundo Thomsen (1990, p.225-236), permanece insuperável no pensamento platônico. Rejeitando o chorismós e introduzindo as ideias nas realidades sensíveis, ou seja, descendo com as ideias do mundo inteligível ao mundo sensível – as formas da matéria – Aristóteles abriu uma nova senda para a ontologia.

Sob o ângulo do sujeito na relação de conhecimento com o objeto, o homem é visto como um ser capaz de conhecer a natureza das coisas, isto é, a verdade intrínseca de cada uma delas. Do ponto de vista do objeto, as realidades sensíveis, em virtude da forma nelas subjacentes, são naturalmente cognoscíveis.

Para a vida na polis, abre-se a possibilidade de que os cidadãos tenham opiniões verdadeiras sobre os assuntos da polis – desde que correspondam à natureza da coisa opinada – e, assim, o filósofo pode e deve tomar as opiniões práticas como ponto de partida de sua investigação especulativa.

Sem dúvida, uma inversão completa do caminho do modelo platônico. O homem aristotélico não vai mais buscar na teoria da reminiscência o acesso ao conhecimento das realidades físicas e dos assuntos da polis, mas no caminho da abstração da experiência sensível. Isto é, a forma (a ideia platônica) está na substância de cada ser (no mundo sensível e não mais no mundo inteligível). E também no ser das ações humanas multifacetadas que tomam parte na vida da polis.

A investigação filosófica aristotélica, consubstanciada em três de suas grandes obras[5], rompe com a unicidade do saber platônico: um conhecimento das ideias incindivelmente teórico e prático, posto que as ideias, situadas no mundo inteligível, constituem o substrato sobre o qual são formadas as realidades do mundo sensível. Uma investigação do saber que contempla as ideias e que, por isso, configura-se num saber infalível, na ótica platônica, porque forma as coisas segundo as ideias.

Aristóteles, inspirado pela episteme do conhecimento platônico, que tentou conciliar a primeira crise histórica da filosofia, desencadeada pela questão da mutabilidade entre Parmênides (mundo imutável) e Heráclito (devir constante e perpétuo), propõe que, no âmbito do saber humano, a realidade sensível, objeto de estudo da física e da metafísica, tem, em si mesma, o princípio (ou o motor) de seus movimentos. E as ações humanas (tanto aquelas voltadas para o agir ou para o fazer) têm seu princípio no homem.

O resultado de uma arte (como a escultura ou a pintura) tem seu princípio na arte (techne) de quem a produz. A ação humana que se encerra em si mesma (como o ajudar alguém ou se omitir a fazê-lo) tem seu princípio na escolha. Assim, para Aristóteles, o saber com relação ao puro saber é teórico. No que toca às coisas feitas ou produzidas (externamente), é um saber poiético. No que concerne ao agir, é prático.

A diversidade nos objetos e na relação dos respectivos saberes com os objetos volta ao ponto de partida, sob a denominação aristotélica de filosofia teórica e filosofia prática: ambas investigam a verdade e a causa que proporciona essa realidade.

E, logo, são episteme. Todavia, a filosofia teórica busca a verdade como um fim em si mesma. A filosofia prática busca a verdade que é posteriormente ordenada à obra a ser feita aqui e agora[6]. O saber prático não é um fim em si mesmo, como o saber teórico, mas sempre tem em vista o horizonte de outro fim[7], ou seja, da ação.

Na investigação ética e política – os campos por excelência da filosofia prática – o objeto é conhecido de molde a poder ser posto em obra pelo agente da ação[8]. A partir de então, a ética passa a ser encarada como uma disciplina filosófica específica, com objeto, método e conceitos próprios. Para a vida na polis, essa revolução no campo das ideias significou uma revolução no campo da praxis: no seio da polis, as ações deixam de conduzidas pelo saber teórico do filósofo, o justo e o político platônicos, e passam a ser regidas pelo saber prático do bom político, iluminada pela phrónesis[9].

A filosofia prática aristotélica investiga o modo pelo qual a phrónesis é o princípio das escolhas e ações humanas que são tidas como virtuosas no ethos da polis. Ensina Abbà[10] (2011, p.74) que

o ponto de partida da filosofia prática são as “aparências” do sábio (phrónimos), do virtuoso (spoudaios) no ethos da polis: isto é, os seus juízos sobre a excelência de determinar as ações concretas e, de modo mais geral, os éndoxa, as opiniões de autoridade acerca do modo conveniente e nobre de viver e de agir. Ademais, o filósofo prático começa sua investigação, mais em geral, a partir dos legómena, as opiniões correntes acerca dos assuntos humanos, das excelências e dos bens humanos. O filósofo prático visa a dar razão dessas opiniões mediante processo diaporético: isto é, examina as eventuais aporias às quais as opiniões conduzem e busca resolver as aporias explicando a parte de verdade e a parte de erro contida nas opiniões. Mais em geral, o filósofo prático procede dialeticamente: examina as opiniões possíveis acerca de um problema prático, descarta, com argumentação contra-interrogativa ou refutatória, aquelas que levam a aporias ou que incorrem em contradição ou que contravêm os éndoxa. As opiniões que resistem ao exame ele as considera verdadeiras e mostra a sua compatibilidade. Assim procedendo, o filósofo prático parte do ‘quê’, isto é, das opiniões sobre as ações justas, boas, convenientes e remonta aos seu ‘porque’, isto é, à razão (logos) que as justifica. Este procedimento não é exclusivo da filosofia prática, pois também se acha na filosofia teórica (física e metafísica): é a via para se recobrar o conhecimento dos princípios próprios de uma ciência, princípios dos quais parte, então, a argumentação apodítica para explicar por que certas propriedades pertencem necessariamente ao objeto específico estudado por aquela ciência. O que diferencia a filosofia prática é o fato de que o ‘quê’ do qual ela parte é-lhe fornecido pelo ethos da polis, ethos que, por via da educação e da disciplina, tornou-se çthos ou caráter do indivíduo que age bem. Assim, o ponto de partida da investigação filosófica ‘ética’ é o mesmo a partir do qual tem início o raciocínio prático do phrónimos.

Ademais, a filosofia ética diferencia-se pelos motivos pelos quais alcança o procedimento dialético. Tal justificativa reside numa concepção normativa da vida boa e das excelências que a constituem. Superada esta etapa, o filósofo prático pode estipular e fundamentar normas gerais de como se deve agir em vários planos práticos para realizar a vida boa.

Concomitantemente, assume um perfil tipológico, porquanto não indica uma concepção absolutamente delimitada e rigorosa da vida boa e das excelências para o homem, bem como dos meios ou das ações necessárias para tanto. A ética limita-se a informar os postulados gerais (typos) do bem supremo realizável pelo homem, sem fazê-lo de maneira certa e determinada.

O procedimento tipológico confere-lhe o caráter de ciência e diferencia-se da phrónesis, que não pode ser uma ciência, na medida em que extrai do ethos os princípios do raciocínio prático para determinar, no caso concreto, a ação que convém ser feita para viver bem nas circunstâncias contingentes.

Ao passo que a filosofia prática procura justificar os fins das virtudes éticas, refluindo-os a uma concepção normativa da vida boa e descreve os atributos do raciocínio prático com o qual o sábio aplica às situações os fins virtuosos que definem a vida boa.

Logo, conclui-se facilmente que a filosofia prática aristotélica, ao contrário da filosofia platônica do Bem, é perfeitamente compatível com o ethos da polis e os éndoxa. E o filósofo prático não se limita a observar a realidade empírica e comentá-la, digamos, como um sociólogo nos dias atuais: ele vai além, pois compreende o ethos da polis, submete-o a uma argumentação dialética e diaporética, identifica uma concepção normativa de vida boa e, nessa tarefa, acaba por ser um crítico do mesmo ethos, buscando aprimorá-lo.

A distinção entre sabedoria prática (phrónesis) e filosofia ética requeria um giro copernicano em relação à posição platônica: se a justiça era considerada primeiro na polis e depois na alma, com Aristóteles, ainda que concordasse com a máxima platônica de que o regime da polis e de suas leis educavam o caráter moral e as excelências do cidadão, inverte a mão de direção e inicia a consideração da justiça pela vida boa dos cidadãos, prescindindo-a do regime político ao qual estava afeta, a despeito do benefício decorrente de seus efeitos pedagógicos na situação singular de cada cidadão.

E, nesse estudo, analisava a vida boa cm si mesma, como vida humana virtuosa, o locus, por excelência, da phrónesis, o saber prático exercitado pelo indivíduo na condução de uma vida boa e feliz: uma ética que é vista sob o ângulo do agente na direção do fim por ele realizado, exercitando sua sabedoria prática.

Entretanto, não se pode esquecer que a realidade do indivíduo grego era uma realidade eminentemente pública no seio da polis, na tarefa de condução dos destinos da cidade. Nesse momento, surgem em cena as relações entre filosofia prática e filosofia política.

Para Aristóteles, a ética assume uma função normativa, pois estabelece o fim em ordem do qual devem ser constituídos os regimes políticos e as leis e, como somente pode ser realizado no âmbito da polis, a especulação ética deve ser complementada por uma investigação sobre uma constituição da polis que propicie efeito pedagógico junto à tarefa singular de cada cidadão em auferir as virtudes necessárias para aquele mesmo fim.

Nesse trabalho especulativo, Aristóteles resolve escrever A Política, cujo fulcro foi o de analisar as inúmeras constituições das poleis gregas, determinar aquela que pode ser reputada como a melhor, delimitar os tipos de constituições possíveis e apontar as formas e das causas da corrupção das constituições.

No enfoque de suas obras éticas (Nicômaco, Eudemo e Magna Moralia) com a Política, o filósofo deduz que a vida boa e feliz para o indivíduo (atenha-se à realidade social grega: cidadão, homem, adulto e livre) é formada pela união dos três gêneros de vida, a vida contemplativa ou filosófica, vida ativa na polis e a vida prazenteira. A primeira é a principal felicidade e a mais elevada, a segunda ordena as tarefas humanas rumo à primeira e ambas comportam um prazer apropriado.

Esse elevado ideal demanda um aperfeiçoamento interior da alma do indivíduo, feito pelo cultivo de disposições excelentes, o que se dá somente quando as virtudes da parte apetitiva obedecem à razão e as virtudes da parte racional.

Por isso, boa parte da investigação em Ética a Nicômaco é uma investigação sobre as virtudes para uma vida boa, as disposições estáveis da parte apetitiva que formam o substrato para a atuação da sabedoria prática, as chamadas virtudes éticas, distintas das virtudes dianoéticas, na qual se insere a phrónesis.

Se o indivíduo carece das virtudes éticas que corrigem seus apetites, ele até pode saber como deve agir no caso concreto, mas tal saber não será atualmente prático. Atuará seguindo um apetite não reto, o que basta para que aja mal voluntariamente.

Então, por faltar a habitualidade no exercício dessa virtude, o indivíduo justo que comete injustiça torna-se menos justo até que, de ato injusto a ato injusto, a inclinação de seu apetite que, antes era devotada para a justiça, agora, é para a injustiça. Passa a ser um indivíduo injusto.

Aqui jaz a diferença entre a techne sofista e a phrónesis aristotélica. Esta é um saber pelo qual as virtudes éticas chegam ao próprio ato no caso concreto, a escolha certa ou o fim virtuoso, de sorte que autor e obra são idênticos (como na primeira parte do exemplo acima, são justos).

As virtudes éticas valem-se da phrónesis para operar seu próprio fim bom no âmbito da praxis do caso concreto. E a techne sofista é um saber independente das virtudes éticas. Sua obra é distinta do autor e situa-se no domínio da poiesis.

O resultado da obra conjunta formada pela ação das virtudes éticas e da phrónesis é a boa proháiresis, a boa escolha: constitui-se no princípio, interno ao agente, das boas ações. O conjunto de boas escolhas forma a eupraxía, a boa práxis. Com essa explicação da proháiresis, Aristóteles atuava em linha de continuidade com a especulação socrática da vida examinada e do zelo da alma.

Contudo, a partir dele, essa investigação perde sua exclusividade. Sem a imortalidade de uma alma que é forma do corpo, a vida boa somente se realiza no âmbito da vida mortal e que requer não só a boa ordem da alma, mas sua complementação, o êxito da ação, o concurso de bens exteriores e um tempo longo de vida.

4. Síntese

Alimentada pelo aporte epistemológico socrático-platônico, a especulação aristotélica acerca da filosofia moral, ramo específico da filosofia prática, está centrada sobre uma pergunta principal: qual é a vida melhor para o homem, aquela que o torna feliz?

Essa investigação é conduzida sob o ponto de vista do indivíduo humano, que deve praticar a vida boa, por intermédio da atuação das virtudes éticas e da phrónesis no caso concreto, no seio da polis, na qual o legislador sábio sempre deve ter em vista aquela vida boa que os indivíduos hão de conduzir.

Essa perspectiva requer que a filosofia prática articule-se, enquanto ética, no exame da constituição da vida boa, nos inúmeros tipos de virtudes que a compõem e no exercício da vida boa no seio da cidade. Enquanto política, estuda a constituição política e a legislação que possibilitam o viver bem dos membros da polis.

E o método da filosofia prática está em analisar as opiniões sobre a vida boa, as virtudes e a ações, destacá-las segundo sua viabilidade e levá-las à coerência, observando suas verdades parciais que, pela via dialética e indutiva, serão submetidas ao crivo de uma concepção normativa, em linhas gerais, da vida boa e das virtudes. Dessa maneira, a filosofia prática explicita e justifica o saber prático da ética e da política, critica seus fundamentos e procura melhorar o ethos da polis.

5. Contexto existencial do cavaleiro das trevas em seu mundo

Em maio de 1939, a revista norte-americana DC Comics publicava a história do Batman na edição número 27. Criado pelo desenhista Bob Kane, Batman é um herói oposto a todos os demais do universo dos quadrinhos: ele não tem poderes sobrenaturais, não veio de outro planeta, foi forjado a partir dos traumas psicológicos de Bruce Wayne, o qual testemunhou o assassinato dos pais na infância e, em razão disso, tomou a decisão de combater os criminosos de Gotham City.

Para isso, conta com sua inteligência e intrincados planos (inclusive de contingência), além de um constante aprimoramento atlético, que abrange uma série de lutas marciais e técnicas de combate, e de criações tecnológicas desenvolvidas para este fim (os almejados gadgets pelo público masculino).

Sua conduta – ora Bruce Wayne, ora Batman – reflete sua postura psicológica[11]: focada no poder do uso da mente, quer para investigar os crimes, quer para impor o medo na criminalidade, quer para usar e abusar da teatralidade cênica.

Batman é obscuro, como o morcego, um animal que se guia pela escuridão, pelas trevas. Ele não usa armas de fogo e é capaz de se valer de toda força física de seu corpo. Durante o dia, assume a faceta do playboy bilionário. À noite, mascarado, é um homem corajoso e que luta pela justiça que as estruturas policiais de Gotham não podem mais proporcionar, posto que corrompidas por várias razões.

Gotham, aliás, é um mundo que representa um pequeno tratado de filosofia política, com capítulos obrigatórios de Hobbes, Bentham, Kant e Nietzsche. A cidade parece ser um grande adensamento de pessoas que são tão boas quanto a lei permite, porque a desconfiança é recíproca, e a moral de cada uma delas é uma piada de mau gosto (Coringa). Muitas vezes, para salvar Gotham, Batman é aquilo que a cidade precisa que ele seja, a fim de que os cidadãos tenham sua fé na justiça recompensada.

As pessoas instrumentalizam-se em favor de interesses criminosos, muitas vezes para fugir da linha de miséria econômica, provocada pela ganância financeira e pela falta de espírito filantropo dos mais ricos.

Batman, como seus poucos aliados, é o único que segue alguns imperativos categóricos num mundo que conduz as pessoas à tentação de viver sem regras. Gotham ainda lembra um universo citadino em que o mal e o bem confundem-se tanto que só um herói, para além do bem e do mal, do certo e do errado, poderia salvá-la.

Gotham foi criada a partir de um retrato das grandes cidades norte-americanas pós-depressão. Depois da queda da Bolsa de Valores, em 1929, o país entrou numa recessão econômica, cujo maior fruto foi o de conduzir grande parte dos seus habitantes para a linha da miséria.

A depressão, aliada ao período da Lei Seca, que proibia a venda de bebidas alcoólicas no país, gerou uma onde de violência, consolidou a máfia nos Estados Unidos e criou o mito de grandes criminosos, com destaque para Al Capone.

Essa atmosfera existencial é recomposta em Gotham e os vilões que rivalizam com Batman refletem a sombra dos grandes mafiosos e de seus vícios capitais. É nesse contexto histórico e filosófico-político que Batman atua incansavelmente.

6. Batman, o herói aristotélico das trevas

Como viver uma boa vida? A pergunta socrática, retomada por Aristóteles, demanda uma resposta pela via dos modelos morais e que, normalmente, buscamos nos outros. Mas não em qualquer outro, mas num outro que seja portador de virtudes morais, porque, observando tais pessoas, descobrimos aquelas qualidades morais e, imitando-as, poderemos alcançar a boa vida, a vida repleta de virtudes.

Ainda que pairem divergências sobre a moralidade do cavaleiro das trevas, muitos o consideram como um herói virtuoso. Afinal, ele renuncia a uma vida fácil em busca de um fim nobre, mesmo que motivado pela prematura orfandade e utilizando, muitas vezes, as ferramentas do mal contra o próprio mal (com exceção de matar): ele busca a justiça que o sistema legal de Gotham não mais pode proporcionar, em prol da felicidade de seus cidadãos, mediante amostras cada vez mais épicas de extrema coragem.

Mas personagens de ficção poderiam servir de modelos morais? Pensamos que sim, mas, antes, convém analisar as principais objeções a tais modelos[12]. A primeira objeção é fundada na natureza não realista do personagem.

Por ter uma descrição tão irreal, é impossível imitar o Batman. Mesmo no restrito universo dos bilionários, é raro haver um órfão precoce, herdeiro de um império empresarial da envergadura das empresas Wayne. Ninguém pode fazer as coisas que ele realiza no mundo HQ e, logo, não é um exemplo adequado para nós.

Batman é o herói mais real e humano do universo HQ, se comparado aos demais[13]. E é por isso que sua persona exerce grande atrativo junto ao público. Ele é feito de carne e osso e, apesar de dotado de uma inteligência excepcional e de habilidades físicas incomuns, ele continua sendo feito de carne e osso. Todos seus “poderes” são diretamente decorrentes de seu constante treinamento, sagacidade e arsenal de última tecnologia.

Boa parte de suas ações não pode ser imitada realmente. São raras as pessoas que suportam um fardo psicológico de uma orfandade precoce e, quando adulto, uma vida dupla em que uma anula a outra: Bruce Wayne quer amar, como qualquer pessoa, contudo, ao mesmo tempo, sente a necessidade de proteger Gotham a todo custo e, nessa tutela hercúlea, corre o risco de perder justamente a pessoa que poderia estar amando. Um dilema insolúvel. Aliás, com uma só saída: abandonar uma persona em prol da outra.

Também resolve mistérios que, se são intrincados para o comissário Gordon, para ele parecem charadas infantis. Enfrenta, ao mesmo tempo e corpo a corpo, muitos oponentes armados, desenvolvendo planos de contingência e planos reserva para cada uma dessas contingências.

Entretanto, imitar um padrão moral não importa necessariamente na repetição de ações específicas. O essencial é invisível aos olhos, já disse o piloto-escritor. O essencial é seguir suas virtudes nas minhas circunstâncias. Se sou um milionário, posso criar uma fundação voltada para a filantropia.

Se não sou, posso realizar ações de altruísmo dentro de minhas limitações financeiras, auxiliando um hospital para crianças com câncer. Se não tenho nada, posso doar uma parte de meu tempo ajudando num asilo. De qualquer modo, estarei sendo virtuoso. Só não o serei se, se puder fazê-lo, furtar-me a tanto.

A segunda objeção diz respeito à linguagem. Batman não é real e, logo, não é possível referir-se a ele mediante o uso da linguagem. Quando dizemos que Bill Gates é bilionário, ele realmente o é. Basta abrir a edição da Forbes sobre as maiores fortunas do mundo. Mas, nessa lista, não veremos o nome Bruce Wayne, porque ele não existe. Assim, atribuir-lhe a condição de bilionário é uma ficção arbitrária e não se refere a nada.

Então, quando afirmamos que Batman é virtuoso, refluímos para o problema anterior: se ele não existe, logo, qualificá-lo como um ser virtuoso é o mesmo que fazer uma assertiva nula. E, por conseguinte, conferir-lhe um lugar no areópago dos modelos morais seria um equívoco.

Todavia, essa objeção pode ser refutada. De fato, nosso herói não tem existência real. Ninguém conhece um bilionário mascarado chamado Bruce Wayne que passa as noites pulando de telhado em telhado na luta contra os criminosos ou cruzando as ruas de nossa cidade a bordo de um tanque preto e blindado ou da moto que sai dele.

No entanto, ele é um personagem e, nesse sentido e em relação a ele, tais afirmações são reais. Se fadas de história em quadrinhos transformam umas coisas em outras ou fazem surgir uma coisa do nada, embora elas não existam (e também não tenham esse tipo de poder), toda história em quadrinhos que envolvam fadas descrevem-nas como seres dotados daqueles poderes.

E, nessa linha de raciocínio, essa afirmação é verdadeira, porque diz respeito a uma entidade real chamada história de fadas e seu conteúdo. Consequentemente, quando dizemos que o Batman é um herói virtuoso, não faltamos com a verdade, pois, no universo HQ, ele é descrito como uma pessoa virtuosa.

A terceira objeção concerne ao caráter superlativo dos atributos de Batman: suas aptidões físicas e intelectuais estão muito acima da média dos indivíduos e isso dificultaria ou não animaria muito as pessoas a seguir seus exemplos virtuosos de coragem, justiça, magnanimidade, generosidade, prudência e vida ascética. Os autores da DC Comics podem lhe dar tanta virtude, a ponto de ninguém poder alcançar seu patamar virtuoso.

Na história e ao redor de nossas vidas, também existiram personagens reais com tantas virtudes e em padrões tão elevados que, nem por isso, deixamos de nos espelhar em seus exemplos. Bruce Wayne inspirou-se no exemplo de seu pai, que acreditava que Gotham City tinha muitas pessoas boas e honestas e que valia a pena investir dinheiro numa cidade que parecia falida e com um fosso de desigualdades sociais. E, baseado no exemplo paterno, sempre quis mostrar ao povo de Gotham que ela não pertence aos corruptos e criminosos.

Costumamos imitar o exemplo virtuoso de um familiar já falecido, mesmo ciente de que ele está num nível qualitativo superior ao nosso. Mas, nem por isso deixamos de fazê-lo. Alguns costumam imitar o exemplo virtuoso dos santos: tentamos ser generosos como foi Madre Teresa de Calcutá; ser verazes com nossa consciência como foi Thomas More; tentamos ser desprendidos das coisas materiais como fez radicalmente São Francisco de Assis. Mesmo sabendo que, muito provavelmente, não seremos elevados, depois de nossa morte, aos altares das igrejas.

Da mesma maneira, podemos imitar o Batman em seu virtuosismo na coragem, justiça, magnanimidade, generosidade, prudência e vida ascética, por mais inatingível que isso pareça. Imitando seus traços de caráter, podemos nos tornar pessoas melhores. E o exemplo virtuoso de um irreal cavaleiro sombrio de uma cidade de ficção pode nos ajudar a ter uma concreta vida boa num mundo bem real. Aqui e agora.

Afinal, Aristóteles já dizia que, para alguém se transformar num ser humano bom e virtuoso, bons exemplos são necessários para que possam ser imitados. E Bruce Wayne, no traje de Batman, sempre quis inspirar as pessoas de Gotham, pois acreditava corajosamente na salvação citadina.

E porque acreditamos que Batman é um ser virtuoso na coragem, justiça, magnanimidade, generosidade, prudência e vida ascética? Porque ele não só sabe o que são tais virtudes, mas as valoriza na prática. E não numa prática inconstante, mas reiterada incondicionalmente.

Ele treinou seu corpo e sua mente para o sentido que buscou em sua vida como herói mascarado: ao praticar ações corajosas, ele torna-se corajoso; ao praticar ações justas, ele torna-se justo; ao praticar ações magnânimas, ele torna-se magnânimo; ao praticar atos de generosidade, ele torna-se generoso; ao praticar a prudência, ele torna-se um ser prudente e, ao praticar a ascese, ele torna-se um ser ascético.

Em suma, adquirimos virtudes, porque as praticamos, tal como nos tornarmos perito numa arte depois de anos de prática. Como ensina o filósofo, “os construtores de casas fazem-se construtores de casas construindo-as e os tocadores de cítara tornam-se tocadores de cítara, tocando-a. Do mesmo modo também nos tornamos justos praticando ações justas, temperados, agindo com temperança, e, finalmente, tornamo-nos corajosos realizando atos de coragem.” (L. II, 1103a 36-38 e 1103b 1-3) (ARISTÓTELES, 2009, p.41).

O comissário Jim Gordon, o mordomo Alfred e o factotum Lucius Fox, entre outros, seguem à risca a mimética aristotélica. Escolhem Batman como um exemplo a ser seguido, imitando seu comportamento exemplar, com o afã de se tornar virtuosos como ele.

Bruce Wayne tem a exata noção de que não alcançará seu objetivo sozinho, mas está bem consciente de que, como Batman, poderá vir a ser o exemplo que as pessoas precisam, um ser ético que catalisa a vontade de cada cidadão rumo à ética da virtude, a ser exercida no seio social e em prol de si mesmo e da cidade como um todo.

Batman é um ser corajoso, porque arrisca-se sem limites (e, inclusive, a própria vida), toda noite, a restaurar a justiça, totalmente combalida, em razão da falência das estruturas policiais. Ele é um herói justo, pois dá a cada um o seu e recompõe as vítimas ao estado anterior da ofensa.

Também caça os criminosos infatigavelmente pela ruas e becos de Gotham, entregando-os para o julgamento das autoridades legais. Ele é generoso, porquanto deixa de pensar exclusivamente no bem próprio (colocando em xeque o nome de sua família muitas vezes), para se colocar na posição de tutor da vida e do bem alheios.

Também notamos que Batman é um herói magnânimo e ascético, porquanto tem uma grandeza de alma do tamanho de Gotham City e exercita-se constantemente visando ao aperfeiçoamento de sua psyché. Ele abre mão de uma vida frívola e acomodada que a fortuna herdada lhe proporcionaria tranquilamente até o fim de seus dias para mostrar, com uma vida plena de abnegação (inclusive de ordem afetiva) e de luta ininterrupta contra o crime, que sua cidade natal tem salvação e que ela merece ser devolvida para as mãos das pessoas de bem.

É uma vida voltada inteiramente para a polis, que considera suas necessidades mais prementes, como o império da justiça, a ponto de seu prejuízo pessoal, já que ele abdica de uma vida familiar construída ao lado de um ser amado.

Isso, inclusive, é fonte de constantes dilemas psicológicos internos do herói, já que, muitas vezes, temos a impressão de que Bruce Wayne é a máscara de Batman e não o contrário, o que é muito bem retratado ao longo do segundo filme da trilogia de Nolan, cujo título é “Batman: o cavaleiro das trevas”.

Batman ainda é um herói que vive a virtude da prudência, definida por Aristóteles como sendo uma “disposição prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem (L. VI, 5, 1140 b 20 e 1140 b 5)” (AUBENQUE, 2003, p. 59-60). Batman toma suas decisões prudentemente.

Ao pretender treinar a si mesmo numa série de habilidades mentais, físicas e marciais, ele enfatiza os traços gerais do caráter – as virtudes ou excelências – e considera as diferenças peculiares a cada caso concreto na aplicação daqueles princípios morais abstratos que julga corretos.

Batman tem muito evidente a si mesmo que situações diversas exigem variadas maneiras de ação, a fim de que uma certa excelência prevaleça concretamente. Desse modo, os padrões morais aqui indicados vão sendo não só compreendidos pela razão teórica, mas cada vez mais solidificados na razão prática, porque alimentada pela experiência de cada caso concreto vivido.

Aristóteles (2009, p. 132-133) recorda-nos que:

parece ser prudente aquele que tem o poder de deliberar corretamente acerca das coisas que são boas e vantajosas para si próprio, não de um modo particular (...), mas de todas aquela qualidades que dizem respeito ao viver bem em geral. Um indiciação disto é dada pelo fato de que, ao falarmos daqueles que são prudentes, dizermos que são capazes de calcular de modo correto a forma de chegarem a obter um certo objetivo final sério, fim este que não se encontra entre os produtos de qualquer perícia[14].

7. Considerações finais

Nosso herói virtuoso tem consciência de sua missão e, talvez por vocação, não consegue rejeitá-la, ainda que muitas ocasiões o tentem para prosseguir em sentido contrário: o de uma vida normal como qualquer cidadão da caótica Gotham. E, mesmo com esse embate psicológico interior, ele continua se aprimorando naquelas excelências acima enfocadas.

Ortega y Gasset, em sua clássica obra “Rebelião das Massas” (a qual Batman deve ter lido), dizia que o homem superior não é aquele que se crê melhor que os outros, mas aquele que se exige mais do que os outros. Antes de exigir seus direitos, está atento aos deveres que lhe cabem.

Por isso, concluindo com o filósofo espanhol, nada (ou muito pouco) se pode esperar do homem satisfeito consigo mesmo, que não sente falta de nada (ou de muito pouco), além de si próprio. Mesmo com os bilhões de dólares que Bruce Wayne tem, seu virtuosismo fala mais alto e aquela polpuda soma, que poderia servir de justificativa para uma fuga interior, é justamente aplicada como instrumento para o desenvolvimento daquele rol de excelências no âmbito da cidade de Gotham.

Uma pergunta não se cala na mente de cada um de nós: esse assunto da virtude não tem um fim? Até quando precisaremos nos aprimorar virtuosamente? Não existe um tempo livre para o exercício das virtudes? Elas não tiram férias? Sempre terei de estar de prontidão como o Batman?

Gregorio Marañon, médico e pensador contemporâneo a Ortega, afirmou que os deveres que temos são somente uma alavanca para a invenção de novos deveres. O homem que vive a ética da virtude é, portanto, aquele que inventa outros deveres. Aliás, etimologicamente, inventar vem do latim invenire e significa descobrir.

Os deveres já estavam lá, à espera de sua descoberta, com iniciativa e responsabilidade vital. Ao agir assim, o homem virtuoso não somente reage, mas inova e, ao inovar, cresce em virtude. Por isso, não há espaço de descanso para nós. Nem para o Batman. Nem para a ética da virtude aristotélica, a qual demanda não só a boa ordem da alma, mas sua complementação, o êxito da ação, o concurso de bens exteriores e um tempo longo de vida.

Não podemos deixar de escrever algumas palavras sobre o Coringa, seu maior vilão, aquele que completa, sob certo ponto de vista, a existência do Batman. Ciente da miséria humana, o Coringa não tem esperança numa ética, quanto mais numa ética da virtude, pois o convívio com o mal transformou-o numa pessoa pessimista e depauperada.

Como ele já disse, a única coisa sensata a fazer no mundo de Gotham é não ter regras. Se não ter regras de convívio com seus iguais equivale a não ter ética, é impossível extrair coragem, justiça, magnanimidade, generosidade, prudência e ascese de qualquer pessoa.

Mas Batman procura demonstrar a Gotham que seu povo é capaz de uma grandeza virtuosa. Nessa tarefa, Batman é um guardião silencioso, porque seu exemplo atua no “interior” de cada pessoa, de cada homem.

É um protetor zeloso, pois extrai o melhor de cada cidadão de Gotham que o imite. É, sem dúvida, o cavaleiro – no sentido medieval da expressão, ou seja, o homem honrado – que age nas trevas que envolvem o ser humano para trazê-lo para a luz da virtude. Sempre e incansavelmente, como é a luta por alcançar uma ética da virtude.

E o fim dessa jornada virtuosa, para nós, só virá como veio para Bruce Wayne: em seu enterro, no terceiro filme da trilogia já mencionada, o comissário Jim Gordon lê, em seu diário, as seguintes palavras (parece que o Batman lia também Charles Dickens): “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Se Gotham precisa de seu verdadeiro herói, nós também precisamos do nosso: o ser virtuoso e ético do qual somos capazes e para o qual fomos chamados a ser.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


[1] Política, I, 4, 1254 a 71-7, 1255 b 40 e I, 5, 1255 a 2-3. “É claro que certos homens são, por natureza, livres e outros escravos e que, para esses últimos, a escravidão é, ao mesmo tempo, justa e oportuna”.

[2] Nesse ensaio, enfocaremos o Batman visto sob a perspectiva de Frank Miller, autor da famosa mini-série Batman – Ano Um da DC Comics (edições 404 a 407 – 1987) e que serviu de inspiração para a famosa trilogia de Christopher Nolan - Batman begins (2005), The Dark Knight (2008) e The Dark Knight rises (2012). Batman é reinterpretado como o “Cavaleiro das Trevas” e Bruce Wayne decide tornar-se o Batman pelo mesmo motivo anterior, mas acrescentado por um acontecimento marcante em sua infância: a queda num poço desativado nos jardins da mansão Wayne, seguido do medo proporcionado pela revoada de morcegos inquietos por sua presença e do resgate feito por seu pai. Anos mais tarde, quando ele busca um símbolo elementar que o tornasse lendário e incorruptível, Bruce Wayne rememorou o episódio do poço, quando um morcego entrou voando pela janela de um dos cômodos da mansão. Então, decidiu que os criminosos compartilhariam do medo dele e que jamais mataria um homem, valendo-se apenas de sua inteligência, perícia investigativa, treinamento físico em artes marciais e um arsenal de alta tecnologia para conduzir os criminosos para as autoridades policiais. Nessa reintepretação, Batman assume, muitas vezes, uma personalidade de morcego superior a do homem e explora os mais destilados aspectos de sua alma, sobretudo quando se vê diante das raízes profundas do mal.

[3] GAUTHIER, R. A. L’Éthique à Nicomaque – Tome I, Première Partie. Louvain: Publications Universitaires, 1970.

[4] VEGETTI, M. L’etica degli antichi. Roma: Editori Laterza, 1989.

[5] ARISTÓTELES. Da alma. Lisboa: Almedina, 2001; Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009; Metafísica. Bauru: Edipro, 2005.

[6] Metafísica, L. II 1, 993 b 19-23.

[7] Da Alma, L. I 3, 407 a 23-25.

[8] Ética a Nicômaco L. I 3, 1095 a 5-6; L. II 2, 1103 b 26-30; L. X 10, 1179 a 35-b 2.

[9] A prudência é tratada ex professo no livro VI da Ética a Nicômaco, que trata das virtudes dianoéticas, e no capítulo 34 do Livro I da Magna Moralia. Segundo Pierre Aubenque, “a tradição moral do Ocidente pouco reteve da definição aristotélica de prudência. Enquanto as definições estóicas de phronêsis como ‘ciência das coisas a fazer e a não fazer’ ou ‘ciência dos bens e dos males, assim como das coisas indiferentes’, facilmente se impuseram à posteridade, a definição dada por Aristóteles no livro VI da Ética Nicomaquéia apresenta um caráter demasiado elaborado ou, se se prefere, demasiado técnico para poder conhecer a mesma fortuna. Ali, a prudência é definida como uma ‘disposição prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem (L. VI, 5, 1140 b 20 e 1140 b 5)”. In: AUBENQUE, P. A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Paulus, 2003.

[10] ABBÀ. G. História Crítica da Filosofia Moral. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Ramon Llull, 2011.

[11] Acerca do perfil psicológico do herói mascarado, sugere-se o seguinte documentário: Batman unmasked, the Psychology of the Dark Knight: http://www.youtube.com/watch?v=g9Hu1gLo8m0

[12] Segundo Ryan Rhodes e David Kyle Jonhson, autores do capítulo 9 da obra “Batman e a Filosofia”.

[13] IRWIN, W. Batman e a Filosofia. São Paulo: Madras, 2008.

[14] Ética a Nicômaco, L. VI, 1140a 24-31.